Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de maio de 2020

#RapaduraRecomenda – Minority Report – A Nova Lei (2002): os olhos cegos da justiça

Aproveitando o conceito central do conto de Philip K. Dick, Spielberg consegue criar uma adaptação inteligente, ágil e respeitosa com o texto original, mostrando mais uma vez toda a sua versatilidade como diretor.

Steven Spielberg é um dos raríssimos casos no cinema, com uma carreira irretocável. Não que entre seus mais de 50 trabalhos como diretor não existam produções ruins. Mas, quando se trata dele, mesmo olhando apenas para estes casos, ainda é possível ver um diretor com um trabalho muito acima da média. Versátil como poucos, ele demonstra a mesma habilidade para trabalhar com thrillers políticos, dramas de guerra, comédias inocentes e ficções científicas coerentes. E este é o caso de “Minority Report: A Nova Lei”, que nas mãos de Spielberg, tornou-se a adaptação mais bem-sucedida de Philip K. Dick.

A trama se passa em 2054, quando o assassinato foi banido na cidade de Washington, graças à divisão Pré-Crime, um setor da polícia onde o futuro é visualizado através de paranormais, os precogs, e o culpado é punido antes de cometer o crime. John Anderton (Tom Cruise) lidera a equipe de policiais que trabalham no setor, e acredita plenamente na eficácia da Pré-Crime. Quando Danny Witwer (Colin Farrell) é mandado para investigar o departamento, para avaliar se ele deve ser liberado para todo os Estados Unidos, os precogs veem que Anderton matará um desconhecido em menos de trinta e seis horas. Agora, o policial precisa lutar contra o sistema que ele sempre defendeu, para conseguir provar a sua inocência.

Parte do sucesso no resultado encontrado aqui, se dá à maneira como Scott Frank e o novato Jon Cohen, trabalharam na adaptação do texto original. Deixando de lado a intriga política que motiva a perseguição ao protagonista, o roteiro foi construído para ser uma corrida contra o tempo, dando um dinamismo que Spielberg consegue controlar como poucos. Dessa maneira, tudo o que acontece no filme se torna urgente, mesmo quando o protagonista precisa de alguns momentos para respirar, ou quando ele mesmo não pode enxergar para onde correr.

Aliás, não poder ver é a metáfora que o diretor usa para evidenciar o quão incoerente é a simples ideia de uma divisão Pré-Crime. Afinal, nenhum crime é de fato cometido, portanto, aos olhos da lei, todos que foram presos são inocentes. Por esse mesmo motivo, ao se ver preso em uma conspiração, Anderton precisa remover seus próprios olhos para não ser capturado — ao mesmo tempo que Spielberg usa isso como uma analogia para mostrar que a personagem está se libertando de sua visão cega sobre o sistema.

Desta maneira, tudo no filme está relacionado com a visão, para reforçar a metáfora de que a justiça é cega. Os precogs, por exemplo, revelam quem está pensando em cometer um crime através de visões que eles têm do futuro. E é através dos olhos que é permitido acessar determinados locais. Spielberg brinca com o público desde a sequência inicial, ao apresentar o conceito do filme com um homem que sem seus óculos fica cego, enquanto sua esposa está cortando uma máscara e utiliza uma tesoura para furar os olhos. Porém aqui, por ser cega a justiça também é falha, e a jornada de Anderton se sustenta nessa dualidade.

Mas tudo isso poderia soar como uma semiótica gratuita, não fosse a intenção de Spielberg de usar o conceito da visão para falar sobre o próprio futuro retratado. Com pouco minutos de filme, mesmo que não seja possível ver uma única câmera na cidade, não é difícil entender como tudo ali é monitorado de alguma maneira. Isso ajuda a criar um ambiente opressor, uma vez que não há espaço para o livre arbítrio. Novamente, nenhuma das pessoas presas pela divisão Pré-Crime chegou a cometer um assassinato. Na verdade, elas nem ao menos tiveram a opção de decidir não fazê-lo — e como o próprio Anderton descobre, caso lhes fosse permitido escolher, isso não necessariamente resultaria no crime.

Mas o futuro de Spielberg não é apenas claustrofóbico, ele também é muito limpo. E, diferente do que é visto em “Blade Runner” (outra adaptação de Philip K. Dick, que também trata a visão como uma metáfora), aqui o efeito noir é criado através de uma outra técnica de fotografia. Janusz Kaminski (que vem colaborando com Spielberg desde “A Lista de Schindler”) reduz a saturação para mostrar a sociedade apática que se criou, mas, ao mesmo tempo, eleva o contraste para criar uma ambientação neo-noir, sem perder totalmente as cores. O resultado são luzes brancas sempre muito fortes, uma paleta propositalmente sem graça e contrastes bem destacados.

Apesar disso, “Minority Report: A Nova Lei” não pode ser encarado como um filme perfeito de Spielberg. Existem momentos que beiram o deus ex machina, além de diálogos puramente expositivos, criados para dar mais dinamismo ao filme. Também está presente o final cheio de esperanças, que o diretor tanto gosta, porém, isso não interfere na qualidade da obra, seja como um filme de perseguição, ou pela temática sci-fi. O resultado é uma adaptação que, como poucas vezes aconteceu, se mantém à altura dos textos de Philip K. Dick.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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