Peça escrita por Antoinette Nwandu e filmada por Spike Lee é um drama que discute questões raciais de forma expressiva e memorável.
Em janeiro de 1953, o Théâtre de Babylone, na França, realizou a primeira encenação da peça teatral “Esperando Godot”, escrita por Samuel Beckett. Considerada uma das peças mais importantes do século XX, ela conta a história de Vladimir e Estragon, dois indigentes que, na beira de uma estrada deserta, esperam a chegada de um ser chamado Godot. Mais de 60 anos depois, a dramaturga americana Antoinette Nwandu se inspira no clássico francês para escrever a peça “Pass Over”. Apesar de manter a estrutura original da peça de Beckett (dois amigos que esperam algo em um longo período de tempo, no mesmo cenário), Nwandu se aproveita dessa estrutura para falar sobre racismo e o contínuo sentimento de medo que a população negra sente. Assim, não é de se causar estranhamento quando o diretor Spike Lee, conhecido por abordar tais assuntos, se interessa pelo projeto e decide, em parceria com a Amazon Prime Video, filmar a peça teatral e lançá-la na plataforma digital.
Além de mudar a temática original, Nwandu também transforma Vladimir e Estragon em Moses (Jon Michael Hill) e Kitch (Julian Parker), dois amigos negros e sem-teto que vivem em uma rua na periferia de Chicago. Eles são engraçados, carismáticos e cativantes. Mas, mesmo que sempre fazendo piadas e de bom humor, os dois vivem em um estado de alerta constante, apavorados pela possibilidade de serem abordados pela polícia, a quem eles chamam de “anjos da morte”. Ao passo que, Vladimir e Estragon, no texto original, esperavam por um ser chamado Godot, na versão de Nwandu, Moses e Kitch esperam pelo momento em que conseguirão alcançar a “terra prometida”, um lugar onde não teriam que viver amedrontados, onde eles poderiam ser livres.
Enquanto aguardam a oportunidade de atravessarem para essa “terra prometida”, Moses e Kitch matam tempo na esquina da rua 64 com a avenida Martin Luther King. Eles brincam, riem de suas piadas internas e falam sobre suas esperanças e sonhos, mas também demonstram ser extremamente vulneráveis, marcados pela dor de perder as pessoas que amam e pelo medo de, por causa da cor de sua pele, terem o mesmo destino. Essa dualidade presente nos personagens, essa mistura de alegria e melancolia em suas personalidades, é reforçada pelas performances impetuosas de Jon Michael Hill e Julian Parker. Eles conseguem oscilar entre diferentes emoções em um piscar de olhos, preenchendo o pequeno espaço que ocupam com uma energia impressionante. Uma energia que é sentida ainda mais quando os dois entregam cada uma de suas falas com precisão e eloquência, especialmente nos momentos de tensão e padecimento.
É principalmente nestes momentos, quando a peça explora o lado mais lastimoso da vida de seus protagonistas (a quantidade de vidas que foram perdidas ao seu redor; os delírios causados pela fome que sentem; a violência que sofrem diariamente), que a narrativa alcança seu pico de dramaturgia e percebe-se o poder e importância da história escrita por Nwandu. Um desses momentos, especificamente, é quando, sempre que escutam um barulho de armas sendo disparadas, Moses e Kitch se jogam no chão com as mãos na cabeça. A cena se repete algumas vezes durante a obra, e, apesar de ser apenas um gesto que dura apenas alguns segundos, a potência que o ato carrega é tanta, que o horror vivido pelos dois jovens consegue ser sentido mesmo de longe. Além disso, todos os elementos inseridos durante o enredo, como o de Kitch e Moses se jogando no chão, se mostram como relevantes, impactando cada passo dado no recorrer da encenação. Ao mesmo tempo, cada um desses elementos é apresentado nas entrelinhas, no meio de alegorias e metáforas (um homem estranho com trajes dos anos 1950, representando a “América branca”, por exemplo). Assim, nada no enredo é óbvio, fazendo com que a audiência reflita e repense sobre cada uma das cenas apresentadas.
Essa reflexão que a peça de Nwandu consegue provocar no público se dilata mais quando Spike Lee repousa seu olhar documental sobre a obra. Logo nos primeiros minutos, Lee apresenta aos telespectadores o público (composto majoritariamente por pessoas negras da comunidade local) que estava presente para assistir à peça. Além de mostrá-los chegando ao teatro, o diretor, em alguns momentos específicos, documenta a audiência utilizando close-ups. Seus rostos são colocados em evidência enquanto eles assistem Moses e Kitch serem reprimidos pela polícia, ou desconfiarem do cidadão que aparenta ser um amigo, ou temerem por suas vidas ao ouvir o barulho dos tiros. Assim, a história de Moses e Kitch se torna mais forte quando vista pelos olhos de pessoas que sentem na pele o que os dois amigos passam, e acompanhar suas reações é tão poderoso e impactante, que a vontade de vê-las mais vezes é pertinente.
A intervenção de Lee vai além de documentar a plateia e os bastidores. Ele também opta por fazer uma filmagem utilizando diferentes ângulos, cortes ligeiros e uma edição sagaz, trazendo para a peça um movimento e uma expressividade cinematográfica que tornam a experiência ainda mais interessante. Assim, com ótimas atuações, um belíssimo texto, e uma filmagem realizada com maestria, “Pass Over” consegue se despir de quaisquer exageros de dramaticidade que poderiam vir de uma história tão intensa como a que está sendo contada por Nwandu. Mesmo sendo um dos projetos menores de Spike Lee, ele consegue se manter memorável.