Série documental da Netflix vai além de mostrar como a criação de tigres em cativeiro é nociva, pois passa pela exploração financeira desenfreada e culmina no bizarro festival de excentricidade, crueldade e hipocrisia que permeia o universo dos zoológicos particulares.
Del Harvey, líder do departamento de segurança do Twitter, revelou numa TED Talk que boa parte do seu trabalho é pensar nas piores situações possíveis e, assim, evitar que elas aconteçam. Um de seus maiores desafios é que os indivíduos se comportam de maneiras inesperadas e, em suas palavras, “fazem coisas esquisitas”. Esta última frase resume a sensação que é ver “A Máfia dos Tigres”, minissérie documental de sete episódios (com um especial adicionado posteriormente) lançada pela Netflix em 2020.
Os diretores Rebecca Chaiklin e Eric Goode passaram cinco anos mergulhados no mundo dos criadores de grandes felinos nos Estados Unidos, país onde há mais tigres em cativeiro do que soltos na natureza pelo planeta. Com foco na vida de Joe Exotic, dono de um zoológico em Oklahoma, a obra apresenta um festival de bizarrices numa sequência inesgotável de hipocrisia, crueldade e manipulação que mantêm algumas perguntas fixamente presas às mentes dos espectadores. É preciso recolher seus queixos do chão após a profusão de choques na tela enquanto se indagam como o que estão vendo pode estar de acordo com a lei e se algum dos protagonistas inspira algum tipo de empatia.
A série vai muito além de investigar a maneira pela qual os animais são cuidados e questionar se eles deveriam estar em cativeiro para fins lucrativos. Logo no início, ela já mostra que Joe está na cadeia após se envolver numa tentativa de assassinato, o que assusta, mas não prepara o público para o que ainda está por vir.
Talvez os donos desses centros até tenham começado seus negócios com boas intenções, porém ao ver o quanto o poder de controlar a vida de grandes predadores subiu à cabeça, o documentário estarrece quando mostra como os bichos são usados para atrair pessoas para atos sexuais, chegando a Doc Antle, que praticamente criou uma seita de sexo entre si e suas funcionárias. A obsessão com o sucesso e com as câmeras levou alguns deles a criarem programas para a internet, onde suas personalidades excêntricas e esquisitas conquistam várias de visualizações porque é tudo tão fora da caixa que não dá para parar de assistir.
É na internet também que Exotic e Baskin travaram uma longa guerra para tentar difamar um ao outro, resultando em rios de dinheiro sendo gastos não para o bem-estar dos animais, mas para tentar arruinar o adversário. Assim, não dá para torcer para nenhum deles, da carne vencida que o zoológico de um recebia do Walmart para alimentar seus tigres ao gigantesco time de funcionários não pagos de outra, a série ilustra como ninguém ali está certo e tudo só demonstra precário cuidado dos felinos e das pessoas que trabalham para esses centros.
As várias filmagens feitas ao longo dos anos são muito bem mescladas com depoimentos de vários dos envolvidos em cada aspecto mencionado. E são tantos aspectos ímpares que impressiona a maneira com que tudo seja narrativamente encorpado e não apenas jogado em tentativas vazias de surpreender. Além dos elementos já abordados, Exotic se candidata à presidência dos Estados Unidos (!), convence dois homens héteros a se casar com ele (!!), filma um reality show e perde tudo num incêndio (!!!) e tem um de seus funcionários atacado por um tigre que arranca seu braço (!!!!). Elementos surreais semelhantes também podem ser vistos nos demais personagens.
Todo o período de gravação forneceu momentos íntimos, permitindo que o que está à frente das câmeras pareça real por mais estranho que seja. A estética presente (e nos figurinos reais de cada personagem) faz com que o bizarro pareça palpável e verossímil.
A série atingiu tamanho sucesso (34 milhões de visualizações em apenas seu primeiro mês) e se espalhou pela internet com seu imenso potencial de gerar memes. Isso resultou num especial com Joel McHale de anfitrião, entrando em contato com várias pessoas que estão no documentário para conversar sobre suas opiniões, após terem visto a obra pronta, e sobre a repercussão que tudo vinha tomando.
Um infindável desfile de canalhice, traições e abusos é o que mais choca e prende a atenção, que consegue, por meio das bizarras figuras retratadas, mostrar que a criação de animais em cativeiro é nociva em aspectos jamais imaginados. Ao longo dos episódios, fica claro que o maior interesse desses donos de centros de “preservação” de grandes felinos é derrubar um ao outro e massagear seus egos, não cuidar dos bichos.
“Máfia dos Tigres” é um profundo poço de entretenimento de realidade, com tamanhas loucuras e reviravoltas que só a vida real pode oferecer. Assistir a algo tão fora do comum é irresistível, mas as tramoias que ocorrem no universo de zoológicos particulares é o tempero apimentado que torna a produção um documentário que, definitivamente, deixa sua marca.