Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de abril de 2020

#RapaduraRecomenda – Ele Está de Volta (2015): reascensão do “mito”

Adaptação do livro homônimo usa de comédia surreal e cenas reais, com a grande atuação de Oliver Masucci no papel de Hitler, para alertar a audiência sobre a sombra do fascismo, trazendo uma forte crítica à mídia e à sociedade.

Mito: narrativa de caráter fantástico ou simbólico; crença construída sobre algo ou alguém; folclore representativo de histórias que desempenham um papel fundamental na sociedade. Ou no entendimento atual, alguém que “mitou”, fala ou faz algo digno de aplausos, ou representa uma maioria. Adolf Hitler pode se encaixar nas duas definições. O grande vilão do mundo, o monstro responsável pelo pior crime contra a humanidade da história. Sua imagem representa o mito da maldade humana em pura definição, suas ações são difíceis de serem concebidas como reais, afinal é inacreditável o quão baixo um chefe de Estado é capaz de chegar ao exercer, ou melhor, impor seu poder sobre um povo. Entretanto, “Ele Está de Volta” mostra que essa grande figura do mau pode se encaixar facilmente nesta nova definição de mito. E precisamos estar bem atentos a isso.

Baseado em um romance de mesmo título, escrito por Timur Vermes, o longa de David Wnendt (“The Sunlit Night”) parte de uma ideia hipotética: e se Adolf Hitler reaparecesse nos dias de hoje? Como as pessoas reagiriam e que influência ele teria na sociedade? Como ele se portaria diante das novas tecnologias e formas de mídia?

O filme começa com o repentino e inexplicável aparecimento de Adolf Hitler (Oliver Masucci) na moderna Berlin de 2014. Atordoado com o clima pacífico e diversas mudanças, Hitler caminha pela multidão de turistas e nativos aos redores do Portão de Brandemburgo, onde é recebido pelos transeuntes como se fosse uma atração turística, em meio às selfies e saudações nazistas zombeteiras. Suspeitando estar fora de seu tempo, Hitler busca em uma banca de jornal toda a informação necessária para se atualizar dos fatos, e lá seu caminho se cruza com um fracassado repórter freelancer, Fabian Sawatzki (Fabian Busch). Pensando estar diante de um talentoso comediante, Sawatzki vê em Hitler um caminho para o próprio sucesso, transformando o pseudoartista em uma sensação da internet e tentando conquistar um espaço para ele na TV.

Apesar de as linhas de diálogos e narração serem engenhosas, os momentos de comédia se destacam mais pela atuação de Masucci que pelo texto propriamente dito. O ator – irreconhecível por conta da caracterização – é preciso nos maneirismos do ditador, empregando com perfeição seu sotaque característico sem apelar para a caricatura, aliado a um incrível domínio de cena. As quase duas horas do longa mesclam cenas documentais e fictícias, capturando interações das pessoas reais com Hitler e logo a comédia dá lugar ao desconforto diante das opiniões absurdas e insatisfações que as pessoas externam sem nenhuma vergonha, de cunho xenofóbico e racista. Basta que se sintam endossados por uma figura como o “Führer” para aos poucos revelarem que os pensamentos que originaram consequências terríveis do passado ainda estão presentes, crescendo aos poucos sem que ninguém dê a devida importância.

Na narrativa, uma briga velada por poder e audiência dentro de uma emissora transforma o ditador em uma grande atração em um programa de TV cujo humor já era bastante problemático. E não importa que Hitler esteja proferindo um discurso que une obviedades e analogias sem sentido, apenas usando insatisfações gerais já é considerado “genial” pelo público, afinal a figura “é ousada, é provocante”, e logo conquista muita audiência.

Embora as várias – assustadoras – similaridades com o recente cenário político brasileiro e do mundo deixem um gosto amargo, é possível se divertir com paródias e referências à cultura pop, como “De Volta Para o Futuro” e “A Queda! As Últimas Horas de Hitler”. Apesar de algumas barrigas no meio da narrativa deixarem apertar o clímax no terceiro ato e tornarem o longa cansativo, além de algumas piadas se perderem na tradução, a conclusão usa da metalinguagem para construir um final potente. A virada surge através de uma personagem que vivenciou os tempos sombrios do 3º Reich, uma clara mensagem que a lucidez só virá quando aprendermos a ouvir a História para não repetirmos erros do passado.

Quando criamos a figura do monstro mitológico – o totem da maldade -, nos isentamos da culpa, e o sangue derramado vira uma lenda do passado da qual não queremos lembrar. Uma vez morto o mito, é fácil crer que este nunca ressurgirá, porém ficamos vulneráveis a aparições de figuras vazias e cômicas, que quando menos esperamos estão sendo chamadas de Mito. Enquanto ideologias sombrias existirem no coração das pessoas, ainda que, aparentemente, mínimas demais para serem denominadas de fascistas, ele sempre voltará.

Tayana Teister
@tayteister

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