Trazendo uma incrível dupla de atuações e uma excelente direção de David Fincher, o suspense é um clássico obrigatório para qualquer fã de cinema.
São raros os thrillers policiais que conseguem ultrapassar de maneira efetiva os clichês do gênero. Repletos de perseguições destituídas de personalidade e protagonizados por caricatos detetives implacáveis, muitos funcionam como uma mera distração momentânea, extinguindo-se da memória do espectador poucos dias após a exibição. Embora não sejam necessariamente ruins, não aprofundam tema e personagens e são sustentados por roteiros medíocres que em nada os elevam em relação aos demais. De tempos em tempos, entretanto, surgem pérolas da sétima arte dispostas a desafiar tais regras. Esse é o caso de “Seven: Os Sete Crimes Capitais”, filme dirigido por David Fincher e até hoje celebrado como um grande clássico dos suspenses de investigação.
Escrito por Andrew Kevin Walker, o filme conta a história do investigador William Somerset (Morgan Freeman) veterano que, alguns dias antes de sua aposentadoria, se vê obrigado a unir forças com o novato David Mills (Brad Pitt) na procura de um serial killer que utiliza os sete pecados capitais como justificativa para punir suas vítimas. Dessa forma, parte-se de uma premissa que mistura convenções e fortes traços de originalidade para avançar na construção de uma experiência inesquecível, igualmente elevada pela qualidade das interpretações e pelo magnético “jogo de gato e rato” por ruas escuras e tomadas pela violência.
Brilhantemente conduzida, a obra não se demora em revelar quais são os seus grandes focos. Em primeiro lugar, constrói-se com eficiência uma das melhores duplas investigativas da história do cinema, sagazmente montada a partir dos contrastes entre os dois detetives. Enquanto o genial Morgan Freeman interpreta um homem amargurado, desarmado pelas barbaridades presenciadas ao longo de toda a sua carreira, o carisma de Brad Pitt esbanja a vontade heroica típica de qualquer iniciante no combate ao crime. Jovem e nascido no interior, seu personagem desconhece a sujeira fúnebre da cidade e a falta de empatia disseminada através dos cidadãos, agindo com ingenuidade aos olhos de seu parceiro, que o descreve como alguém “unicamente movido por suas emoções”. Sendo assim, é do contraponto entre o realismo de William e o sentimentalismo exaltado de David que o roteiro entrega uma fascinante evolução de ambos, o mestre racional sempre buscando afastar seu pupilo de deslizes – algo que nem sempre se concretiza – enquanto a determinação deste último dita o ritmo da investigação.
Em segundo lugar, Fincher entrega cenas chocantes e regadas de sanguinolência, montando uma tensão crescente que há muito se tornou uma de suas marcas registradas. Assassinato após assassinato, o terror se amplifica diante do gore físico, tornando-se impossível não questionar quais são os limites e os verdadeiros motivos por trás do misterioso lunático. Esse recurso só se destaca pela total consciência e controle do diretor, que não se rende à pura violência gratuita (por vezes até mesmo poupando o espectador, conforme na magistral cena final) e sabendo se aproveitar do maior trunfo desses momentos: a ligação das mortes com os sete pecados capitais, sendo uma preciosidade à parte desvendar a maneira como roteiro e direção relacionam cada vítima a sua respectiva imoralidade (tais como o advogado de defesa condenado por sua avareza e o traficante “julgado” pela preguiça, por exemplo).
Nada disso funcionaria, entretanto, se a narrativa não tivesse um objetivo muito bem estabelecido. Desde os minutos iniciais, nos quais somos apresentados à pacata rotina de Somerset, fica claro que se trata da banalização da violência em nossa sociedade, aspecto que assustadoramente se tornou costumeiro em nosso modo de vida. A excelente montagem inicial deixa isso evidente: uma fotografia cinzenta e uma quase insignificante trilha sonora dedicadas a um brutal homicídio, desprovidas de um mínimo de comoção pelo ato violento cometido. É igualmente interessante observar como a própria ruína de William exemplifica o discurso do longa- um homem que dedicou sua vida à proteção dos outros sendo tomado pela indiferença. Mas não se engane, ao menos ele admite ser um “pecador”, conforme revela, mesmo que através de uma metáfora, na belíssima cena do jantar, subitamente interrompida pelo tremor de um vagão de metrô:
“A casa que relaxa, vibra e se acalma, não?”
Um retrato nu e cru da humanidade, aquela que se sensibiliza pela morte de um desconhecido noticiada na noite anterior e que na manhã seguinte nem sequer recorda o nome da vítima.
Indo além, o cineasta ainda é capaz de retratar, sob uma ótica bastante pessimista, os extremismos causados pela sensibilidade remanescente em alguns poucos indivíduos, mostrando que nem sempre seus resultados são positivos. De um lado, Mills é a representação perfeita de um homem que, movido pela fantasiosa vontade de salvar todos, é fragilizado diante da fria realidade, tornando-se incapaz de proteger sua esposa Tracy (Gwyneth Paltrow) e cada vez mais afastado de sua sanidade. Do outro, temos John Doe (conforme é apelidado o temido “Zé-Ninguém”), o assustador psicopata que enxerga necessidade em limpar os pecados dos outros, entendendo-se como uma espécie de Messias que só conseguirá transmitir sua mensagem se essa se der de forma violenta. Dois homens tão diferentes quanto semelhantes, separados pela turva linha entre a justiça e a loucura e se encontrando no catártico ato final.
Com tudo isso, “Seven: Os Sete Crimes Capitais” se mostra uma verdadeira aula de cinema sobre a perfeita harmonia entre direção e roteiro na tela. Seu alcance vai muito além das duas horas de duração, trazendo um conto sombrio acerca dos custos e dos pecados gerados pela indiferença.