Mais um filme engajado do diretor inglês denuncia as condições precárias de trabalho de uma classe média empobrecida e as consequências na vida dos trabalhadores informais e autônomos.
Formado em Direito e realizando filmes desde os anos 1960, Ken Loach se notabilizou por obras com forte temática social, enquadradas num subgênero que pode ser chamado de “realismo socialista”. Isso porque seus projetos geralmente se engajam, num estilo naturalista e direto, nas dificuldades dos trabalhadores precarizados da Inglaterra. Desde 2008, quando a crise do mercado imobiliário estadunidense contaminou as economias do mundo, fazendo muitas pessoas perderem suas casas e levando outras tantas à vulnerabilidade, a filmografia desse diretor britânico tem ganhado novo fôlego e maior intensidade em suas denúncias. Foi assim que “Eu, Daniel Blake” ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2017, o BAFTA e outros tantos prêmios internacionais daquela temporada, com a história dramática de um trabalhador de cinquenta e novos anos oprimido pelo labiríntico sistema previdenciário inglês após um ataque cardíaco. Agora com “Você Não Estava Aqui“, Loach apresenta um novo drama que explora as consequências mais íntimas das novas dinâmicas de trabalho autônomo.
Essa perspectiva começa ao acompanharmos a entrada do pai de família de meia idade Ricky (Kris Hitchen) em uma empresa de entrega de mercadorias. O tema é muito atual e os conflitos do protagonista encontram paralelos nítidos com os de outros profissionais sujeitos ao mesmo esquema profissional, como motoristas e entregadores de aplicativo. Esses indivíduos, em número crescente no mundo todo, não estão mais amparados pelas antigas leis trabalhistas do Estado de bem estar social dos anos 1980 e hoje são colocados em circunstâncias comprometedoras, sem qualquer garantia de estabilidade ou auxílio. É assim que o personagem, desesperado por alguma renda frente às demandas familiares, se sujeita a trabalhar numa firma que lhe deixa claro, logo na primeira cena do filme, que suas obrigações serão muitas e os direitos quase nenhum.
Prazos inatingíveis, quinze minutos de almoço (controlados pelo alarme do smartphone do empregador) e nenhuma autonomia (nem mesmo para ir ao banheiro) são algumas exigências da empresa apresentadas sobre a forma de uma nova metodologia de serviço, pretensamente mais dinâmica e eficiente. Desse modo, o funcionário vira um “colaborador”, título requintado que, na prática, só quer dizer falta de direitos, e com isso a instituição se exime de qualquer responsabilidade sobre ele ou seus produtos. Nem mesmo o equipamento de trabalho está segurado e todo dano a ele será arcado pelo “colaborador”. Até mesmo a van que Ricky utiliza nas entregas deve ser comprada por ele ou alugada com a própria empresa, tendo o valor aluguel descontado de seus rendimentos. Em troca, diz-lhe seu chefe, ela terá “liberdade” para trabalhar quando quiser, tendo seus rendimentos proporcionais às horas trabalhadas.
Tal ilusão de mais independência dura pouco. Embora o protagonista seja um funcionário esforçado e bem disposto, logo seus familiares começam a repercutir os desdobramentos de sua condição precária e a constante ausência por conta das extensas jornadas laborais. Os efeitos recaem primeiro sobre sua mulher Abbie, que tem o próprio emprego, como cuidadora de idosos e pessoas com necessidades especiais, dificultado diante da nova função do marido. Seus filhos também mostram os abalos da precarização da vida familiar e do afastamento dos pais, sobretudo o adolescente Seb (Rhys Stone), que apresenta um comportamento cada vez mais errático e agressivo. Desinteressado pelos estudos, ele prefere passar os dias pichando mensagens críticas nas paredes de Londres com os amigos. O rapaz chega a ser expulso do colégio, fato tão comum para jovens nessa situação que, se não forem expulsos, simplesmente evadem diante da falta de perspectivas ou da demanda em contribuir com a renda familiar.
Em uma cena monumental, Ricky se exalta diante das peraltices de Seb e toma seu celular, provocando um rompante de raiva do garoto. Depois, a mãe explica ao pai que o celular “é a vida” do filho, lugar onde estão todos os seus amigos e interações. O refúgio nas redes sociais e a própria incapacidade de os pais acalentarem seus filhos diante das incertezas do futuro – pois eles mesmos igualmente estão muito preocupados e perdidos com essas incertezas- parecem ter feito, de fato, com que o celular e a virtualidade sejam mais relevantes do que essa dura realidade.
O minimalismo dessa produção é mais uma vez brilhantemente conduzido por um diretor que faz tanto com poucos recursos e nunca se deixa levar pela pirotecnia cinematográfica para contar as histórias que deseja. Assim, sobra espaço para os personagens se desenvolverem e os atores realizarem o melhor de suas performances, incluindo os figurantes, selecionados de forma bastante espontânea e quase documental. Sendo a família central o núcleo da trama, vale ressaltar a atuação de Debbie Honeymoon, com uma esposa exausta de tanto perrengue e que ainda consegue ser solidária e afetuosa com seus pacientes mais vulneráveis do que ela. Destaque também para os mais novos, interpretados por Rhys Stone e por Katie Proctor, que vive a pequena filha do casal Liza Jae (em seu primeiro filme), traduzindo a maturidade de uma jovem criança diante das demandas de sua condição de vida.
O título original, “Sorry, we missed you”, vem a partir da mensagem padrão deixada pelos entregadores quando não encontram o destinatário, mas também pode ser traduzida como “Desculpa, sentimos sua falta”. Muito mais inspirador e simbólico do que a tradução em português, o discurso traduz o sentimento da família no final da narrativa diante da rotina a que Ricky está sujeito e sua própria angústia por não poder fazer mais pelos seus familiares.
O fato de Ken Loach explorar as consequências da desigualdade e do empobrecimento da classe média no contexto inglês parece ressaltar como a desigualdade tem se agravado pelo planeta. Se mesmo nos países centrais do capitalismo se vive esse grau de precarização, o que temos nos países periféricos (ou de capitalismo tardio) como o Brasil é ainda mais dramático. Basta se atentar ao número de trabalhadores informais que fazem seus “corres” diários pelo país, em busca de qualquer tipo de renda; ou ainda aos números do IBGE que apontam que, em 2019, metade dos brasileiros viviam com R$ 413 mensais em média. Soma-se a isso a crise econômica que se avizinha por conta da paralisação global imposta pela pandemia de coronavírus e fica o questionamento sobre como ficarão indivíduos que vivem em situação de vulnerabilidade. Por isso, não se assuste se, mesmo diante de uma crise na saúde, esses precarizados do mundo continuem trabalhando, contrariando as autoridades, se expondo ao risco e aumento a curva da contaminação. Tal como Ricky no fim do filme que, todo machucado, ainda sai para trabalhar, essas pessoas não podem se dar ao luxo de parar uma vez que, sem amparo dos governos ou das empresas, correm o duplo risco de morrer: senão doentes, então de fome.