Minissérie da Netflix estimula a discussão sobre o desenvolvimento científico e ações políticas responsáveis contra as epidemias globais.
Com seis episódios, a minissérie produzida pela Netflix e filmada ao redor do mundo, “Pandemia“, é um intrigante mapeamento do contínuo trabalho de profissionais de saúde e pesquisadores contra o avanço de surtos epidemiológicos globais. A produção ganha tons proféticos em tempos de pânico com a disseminação do novo coronavírus (Covid-19), pandemia que já alcançou o mundo inteiro, incluindo o Brasil. Isso porque a narrativa reforça, a partir das explicações dos cientistas, que o surto de patogênicos disseminados por vírus ou bactérias têm se mostrado crescente nos últimos anos, como nos casos anteriores do SARS, a Síndrome Respiratória Aguda Grave (na sigla em inglês) e do MERS, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, uma variante de coronavírus anterior ao Covid-19. Assim, organizações locais e internacionais de saúde, governos e cientistas da área médica sabiam que um novo surto epidemiológico, potencialmente mais destrutivo que os anteriores, estava às vésperas de acontecer. Mas, então, por que ele não foi evitado?
Produzido pela Zero Point Zero, “Pandemia” divide seus seis episódios em capítulos, a partir dos quais acompanha diferentes escalas da estrutura médica global contra epidemias, mostrando que a questão é muito mais complexa e integrada do que podemos inicialmente imaginar. Vemos, assim, desde médicos que atendem pacientes infectados em condições precárias de trabalho, seja no interior dos EUA ou no distrito indiano do Rajastão, até pesquisadores e cientistas que estão na outra ponta da cadeia, tentando desenvolver novas vacinas mais eficientes para esse tipo de contaminação. Ponto em comum na jornada desses personagens é a dificuldade em convencer os governantes e a opinião pública quanto a emergência do tema.
Um dos contrapontos mostrados dessa cruzada científica, por exemplo, é um movimento da sociedade civil anti-vacinação no interior dos EUA. Sendo justa na abordagem e ouvindo todos os lados da história, a série entrevista moradores da região americana de Oregon que lideram um movimento contra a vacinação compulsória, defendendo a liberdade dos pais de decidirem sobre a saúde de seus filhos. Manifestando desconfiança sobre os medicamentos, baseando-se em supostos casos de efeitos colaterais devastadores causados pela vacinação, eles vão até os tribunais pelo direito de não vacinar suas crianças. Como contraponto, vemos lideranças políticas locais e médicos tentando aprovar leis de vacinação universal, apontando os perigos de contaminação nos grandes conglomerados urbanos a partir de exemplos mensuráveis, como o recente retorno do sarampo, que havia sido erradicado nos anos 1990. Curiosamente é no Congo que se exibe um caso muito parecido com essa resistência dos americanos. Enquanto a Organização Mundial da Saúde tenta conter o avanço do Ebola na região, milícias locais e mesmo a população se mostram apreensivos com as campanhas de vacinação, lançando teorias de que são as vacinas que disseminam a doença. Assim, os profissionais de saúde na região vivem em constante risco e os centros de tratamento são muitas vezes saqueados e incendiados por milícias locais.
“Pandemia” mostra, assim, que também existe bastante perigo e tensão no trabalho desses profissionais que, na ponta, tentam garantir condições de saúde mínimas para uma população global que não para de se multiplicar. É justamente por isso que um surto global como o Covid-19 tem potencial mais devastador do que foi, por exemplo, em 1918, a chamada Gripe Espanhola, que tirou a vida de aproximadamente 5% da população mundial naquele período. Outro fator associado ao surto das epidemias é o crescente consumo de proteína animal, sobretudo sem as devidas condições de armazenamento e abate, como na China, onde as últimas cinco epidemias globais surgiram. Condições sanitárias, cidades poluídas e superlotadas e o deslocamento intenso de grande número de pessoas em meios de transportes mais rápidos e acessíveis também fazem com que pandemias globais sejam muito mais possíveis e destrutivas do que as anteriores. Aqui, vale a pena uma recomendação associada, para os que se interessarem pelo tema: além de “Pandemia” vale a pena assistir ao sexto episódio da segunda temporada da série “Explicando” (2019), também da Netflix, que ilustra de forma didática como os últimos surtos respiratórios, como os já mencionados SARS e MERS, se espalharam pelo mundo através de turistas em viagem e em ambientes como hotéis e elevadores.
Depois de assistir “Pandemia”, uma coisa parece clara: a humanidade ainda não está preparada para lidar com ameaças desse tipo. Por mais tecnologicamente avançados e modernos que o mundo seja, parece evidente que evitar epidemias globais demanda muito mais engajamento, debate e clareza dos governantes e da sociedade civil. De um lado, é necessário mais investimento em saúde e tecnologia para que pesquisadores como os da Distributed Bio, que tenta desenvolver uma vacina global contra gripe, protegendo inclusive contra dengue e zika, tenham condições necessárias para seguir seus experimentos. De outro, a sociedade civil, produtores, empresários e comerciantes têm que se responsabilizar sobre as condições sanitárias dos alimentos, a partir de meios de cultivo de animais de melhor forma.
“Pandemia” causa, nos espectadores, efeitos parecidos aos de uma contaminação por um desses vírus gripais: suor frio, ansiedade, o estômago revira. O mal estar, porém, pode servir para uma mudança de ação diante de um momento crítico como esse, fazendo refletir sobre como estamos desenvolvendo nossas sociedades, qual a qualidade da vida coletiva estamos oferecendo a partir de nossos sonhos de desenvolvimento e produtividade e como podemos usar as melhores qualidades da civilização moderna para combater os males que nos assolam em escala global, como a desigualdade, a devastação ambiental e as doenças.