Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 06 de março de 2020

A Última Coisa Que Ele Queria (Netflix, 2020): quando tudo dá errado

Numa produção onde os aspectos técnicos são falhos, as atuações não se destacam e o roteiro é em partes risível, o filme de Dee Rees não consegue ser efetivo em nada que está tentando fazer.

Estreia original Netflix, “A Última Coisa Que Ele Queria” conta com um elenco repleto de estrelas, como Anne Hathaway, Ben Affleck e Willem Dafoe, além da direção de Dee Rees, previamente bem-sucedida com os filmes “Pária” e “Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi”. Infelizmente, o produto aqui entregue pela diretora, com roteiro também dela em parceria com Marco Villalobos (estreante no cargo), não chega nem perto da qualidade de seus trabalhos anteriores.

Em 1984, Elena (Hathaway), jornalista cheia de princípios éticos, deseja noticiar o conflito Irã-Contras, mas seu chefe a coloca na cobertura das eleições a presidente daquele ano. Insatisfeita, ela larga tudo para ir até uma ilha na América do Sul para cumprir um dos desejos de seu pai, Richard (Dafoe), que está doente.

O filme é adaptação do livro de Joan Didion, e talvez fosse melhor que esta obra continuasse apenas nas páginas, já que nas telas, nada da produção funciona. Começando o primeiro ato com uma edição já confusa acompanhada de narração que tenta ser metafórica, mas não ajuda em nada a história, o espectador é jogado no meio de uma narrativa completamente incoerente. A história principal coincide com diversos plots secundários de forma quase incompreensível. O texto de Rees e Vilallobos nem tenta explicar o conflito histórico, o que deixa a audiência sem saber quais são, de fato, os riscos que os personagens estão correndo.

Anne Hathaway tenta, mas não chega perto de parecer a mesma atriz que já entregou diversas performances ótimas, sendo dramáticas ou cômicas. Em diversos momentos ela é exagerada, o que pode ser em partes culpa do roteiro, que se encosta no clichê da “ótima jornalista que todo mundo elogia, mas que está sendo cortada de furos realmente interessantes pelo seu chefe, por conta da relação do jornal com políticos ou pessoas de poder”. Sim, a maioria das histórias de jornalistas merecem ser contadas exatamente por este traço, mas aqui, mesmo a protagonista indo para zonas de guerra e sendo uma mulher forte, parece mais uma caricatura do que realmente alguém com o mínimo de caracterização.

Para aqueles que se animam com a ideia de ver esses atores interagindo em cena, só resta decepção: o primeiro encontro entre Elena e Richard é forçado, apresentando um diálogo expositivo que deixa claro como a protagonista e seu pai não se dão bem sem nenhuma sutileza; eles simplesmente não falam como pessoas reais e sua dinâmica não convence. Apesar de se importar com ele superficialmente, não existe um elo verdadeiro ali, nem uma relação complicada que vai mostrando suas camadas aos poucos (algo que o filme provavelmente queria transmitir, sem sucesso). Assim, o fato de Elena se envolver em situações perigosas e irresponsáveis pelo pai se torna ainda mais incompreensível. Já Ben Affleck, que normalmente já não tem muito carisma, aqui parece estar com preguiça de atuar. O relacionamento de seu personagem com Elena é mal explicado, e nunca sabemos de fato qual é o lugar dele naquela história, para no final perceber que isso se dá ao fato de que os roteiristas queriam criar um plot twist ao redor do personagem dele. Mas se a audiência não sabe nada sobre ele, como vai se importar?

A narrativa tenta emular o sentimento que “Argo” passa sem saber o que fez a obra (ironicamente, dirigida por Affleck) ser tão boa. O filme de Rees utiliza diversos closes e trilha sonora alta (e extremamente repetitiva) para sinalizar as cenas de suspense, como se estivesse gritando para a audiência “sinta medo agora!”, deduzindo que esses truques por si só serão o suficiente para determinar a efetividade das cenas. Porém, quando o texto não é bom e a montagem é pior ainda não tem trilha sonora que salve, e a sensação que fica quando a protagonista está relaxada e fumando e é mesma nas cenas de tensão.

Quando o terceiro ato chega, é difícil diferenciar o que Elena está fazendo pelo jornal e pelo desejo do pai. Os trinta minutos finais tomam um rumo completamente diferente, mudando o tom da obra e deixando seu terceiro ato ainda mais sem propósito ou sentido. O plot twist final choca, mas pelos motivos errados, pois nada que foi construído até ali monta uma base narrativa sólida para o que é apresentado no final. Na verdade, em toda segunda hora do filme se perde a vontade de dar uma chance para a obra e prevalece o sentimento de apenas torcer para que acabe logo.

Incompreensível até para os espectadores mais atentos, “A Última Coisa Que Ele Queria” não tem praticamente nenhuma qualidade que o redima de alguma forma. Caso não queira se decepcionar e desperdiçar duas horas da sua vida, a primeira coisa que você deve fazer é passar longe desse filme.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

Compartilhe