Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de fevereiro de 2020

See (Apple TV+, 1ª Temporada): nova visão de um antigo mundo

Em um mundo pós-apocalíptico onde os poucos seres humanos sobreviventes são cegos, a mera existência de indivíduos com o dom da visão é ameaça suficiente para aqueles que detêm o comando da sociedade.

Muitas obras retratam diferentes futuros distópicos para a humanidade: apocalipse zumbi, corporativismo exacerbado, controle tecnológico. Variadas situações mostram o fim da realidade como a conhecemos e os seres humanos sempre em uma batalha pela sobrevivência. É nesse sentido que a plataforma de streaming AppleTV+ nos traz uma nova visão (piada intencional) sobre o que aconteceria com a raça humana.

Criado por Steven Knight, o mesmo de “Peaky Blinders”, “See” traz um universo até então original. No século XXI, um vírus mortal reduziu a população mundial a menos de dois milhões de pessoas. Aqueles que sobreviveram e também seus descendentes, no entanto, perderam totalmente a capacidade de enxergar. O tempo passou e foi preciso se adaptar à vida na escuridão. A visão virou um mito, um tabu. Falar sobre ela se tornou uma heresia, algo banido dos pensamentos sociais. E assim seguiu-se em frente, reestruturando-se em uma sociedade com características tribais e uma forte ligação com a natureza. Uma comunidade de cegos.

Sem a habilidade de ver, desenvolveram um pouco mais os outros sentidos. Surgem em alguns indivíduos capacidades como sentir o cheiro de algo a quilômetros de distância, distinguir um barulho específico, ou até mesmo pressentir a emoção do outro (possivelmente a partir de alteração química ou hormonal). Essas novas aptidões auxiliam na caça, coleta de recursos e, principalmente, na defesa de cada grupo.

Somos apresentados a tribo dos alkenianos, liderados pelo destemido Baba Voss, magistralmente interpretado por Jason Momoa. Eles, logo, percebem sua paz acabar com dois acontecimentos simultâneos: a chegada de um exército de caçadores de bruxas e o nascimento de duas crianças gêmeas sem a cegueira daquela distopia.

A série e suas críticas

A série aborda temas bem controversos, como política e religião. Acredita-se que Deus teria retirado o dom da visão como modo de proteger o planeta de ações degradantes, sendo possível a proteção da natureza sem a extinção dos seres humanos. Um novo panteão de deuses surge, guiando a sociedade com suas vozes e suas canções baseando-se naquilo que se ouve e sente, mas não se é capaz de compreender. O sol é chamado de Deus-chama, uma vez que não conseguem contemplá-lo, apenas senti-lo. A presença de uma monarquia supostamente escolhida pelas próprias divindades faz uma ligação entre religião e política, remetendo à Idade Média. A rainha Kane, que ganha vida na brilhante atuação de Sylvia Hoeks, comunica-se com os deuses (vale notar, de uma forma incrivelmente polêmica) a fim de obter conselhos e iluminação para reinar de uma maneira que acredita ser próspera e eficaz.

Um dos assuntos mais aprofundados, sem sombra de dúvidas, é o preconceito. No formato de alegoria, a série nos demonstra como tememos o desconhecido e sentimos dificuldade em aceitar a diversidade. Raça, etnia, nada disso importa quando ninguém é capaz de ver o seu próximo. No entanto, resta justamente nessa capacidade de enxergar a divisão entre as pessoas na produção. É possível observar uma espécie de mito da caverna de Platão. Um grupo de indivíduos vive no escuro e se sente ameaçado quando surge alguém capaz de avistar o mundo real e como as coisas realmente são. Tal como na mitologia, a sociedade abomina e recrimina essa nova habilidade, temendo aquilo que são impossibilitados de conceber. Passam, então, a caçar o “herege”, na tentativa de manter tudo como está. Nesse ponto, observamos o crescimento dos gêmeos Kofun (Archie Madekwe) e Haniwa (Nesta Cooper) precisando agir como os demais, mas vivendo em uma espécie de “escuridão iluminada” para que ninguém descubra serem diferentes.

Outro tema de grande força no decorrer da série é o poder, seja de um monarca, de um guerreiro, até mesmo o da visão. Apesar de todas as atribulações passadas ao longo dos séculos que se seguiram à sua quase dizimação, de todas as barreiras que precisara superar e de toda a adaptação que se submeteu para continuar, a população na sua essência, continua a mesma. Podemos observar as diversificadas perspectivas sobre a autoridade e o que ela representa. A partir daí, o conflito entre os distintos tipos de poderes é o que move a trama. Afinal de contas, em terra de cego, o que resta a alguém que enxerga?

Mas vale a pena assistir?

Inicialmente com uma promessa de originalidade, “See” traz um novo panorama para uma representação batida da humanidade. Assim como diversas obras com diversos panos de fundo, a série nos mostra a possibilidade dos seres humanos serem mesquinhos, gananciosos e avessos às diferenças.

As personagens de Jason Momoa e Sylvia Hoeks são, de longe, as mais intrigantes. Enquanto Baba Voss age como um animal sorrateiro, movendo-se em silêncio e agindo com cautela, a rainha Kane possui um jeito esnobe e bastante teatral. As interpretações de Archie Madekwe e Nesta Cooper são muito boas, e, embora sejam gêmeos, possuem personalidades opostas, com visões de mundo completamente diferentes. Ainda temos as atuações de Alfre Woodard como Paris, uma sábia conselheira, e Hera Hilmar como Maghra, a firme e protetora mãe dos jovens. A eles se juntam Joshua Henry como Jerlamarel, o enigmático e poderoso homem que vê, e Christian Camargo como Tamacti Jun, o fiel e decidido caçador de bruxas.

A história gira em torno da busca dos gêmeos pela iluminação, ao mesmo tempo que fogem do caçador de bruxas. Enquanto isso, a rainha se vê numa complicada situação com seus súditos. Embora a trama acabe por trilhar caminhos já percorridos pelo espectador, ela demonstra ter uma perspectiva inédita de uma situação já conhecida. Um mesmo tempero, com um toque diferenciado.

Aristóteles Fernandes
@rapadura

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