Projeto do diretor Jeff Baena nem sempre obtém sucesso por não abordar muito bem seus aspectos surreais, apesar de conter ótimas performances e bom desenvolvimento da protagonista.
Filmes que exploram o subconsciente humano podem ser ótimas ferramentas para passar mensagens não apenas sobre o significado dos nossos desejos, mas até mesmo do que nos move e nos torna humanos. Obras como “Cidade dos Sonhos”, “Donnie Darko” e “A Origem” se tornaram referências, deixando partes das suas narrativas abertas à interpretação e causando debates entre cinéfilos até hoje. “Entre Realidades”, uma estreia original Netflix, claramente pegou elementos de algumas dessas obras citadas ao mesmo tempo que tentou criar uma linguagem única e peculiar. Porém, falha ao nem sempre conseguir manter o interesse do espectador nos acontecimentos e viagens metafóricas da personagem principal.
O longa dirigido por Jeff Baena, com roteiro dele em parceria com Alison Brie (que igualmente interpreta a protagonista do filme), conta a história de Sarah. Com ansiedade social, ela é bastante solitária e encontra conforto em seu amor por cavalos, trabalhos manuais como bordados e costura, e séries policiais com temas sobrenaturais. Quando seus sonhos começam a ficar cada vez mais lúcidos, começa a perder a noção da realidade enquanto tenta encontrar respostas para seus delírios.
O cineasta é mais conhecido por dirigir as comédias “The Little Hours: A Comédia dos Pecados” e “Vida Após Beth” ( escritas por ele mesmo), enquanto este é o primeiro crédito de Alison Brie na escrita. É aparente que talvez os elementos místicos da trama fossem melhor executados por alguém que já tivesse alguma experiência no gênero ou um entendimento maior do que realmente queria para comandar este lado da narrativa. O primeiro ato, repleto de cenas que causam vergonha alheia em função da estranheza de Sarah ao interagir com as pessoas, rende bons momentos cômicos, nos quais o diretor parece ter mais controle e saber claramente o que deseja daquelas interações. Lembrando a estrutura de “Cidade dos Sonhos” quando o filme se entrega completamente à loucura nos seus trinta minutos finais, nem sempre o que foi construído é amarrado de forma satisfatória. O roteiro ignora aspectos com grande potencial em nome de outros que não tem tanto apelo narrativo. Por conta disso, no geral, os delírios da personagem não trazem grande material para reflexão: ao invés de ficar martelando na cabeça do público durante dias, como normalmente poderia acontecer com essa proposta, pode ser esquecido apenas instantes depois de seu encerramento.
Sarah é uma muito bem construída e a atriz se entrega totalmente ao papel com uma ótima performance. É fácil de prever que aqueles que também tem ansiedade social vão se identificar com o jeito bastante real das ações da personagem. Ela aceita grosserias para evitar conflitos, tenta sempre manter a fachada de que está bem, por medo de se mostrar vulnerável ao pedir ajuda, e não sabe interpretar bem situações sociais. O que a leva a tomar decisões que podem, até certo ponto, serem consideradas absurdas, entretanto casam com o que vimos até ali. A protagonista é cativante e ganha a empatia do espectador com facilidade. Acompanhar seus relacionamentos com todos ao seu redor se deteriorando por conta do seu estado mental é uma das passagens mais melancólicas. É notável que a maioria das pessoas na sua vida a toleram mais do que gostam dela de fato, com exceção da sua colega de trabalho, que parece ter pelo menos um pouco de carinho verdadeiro. Em certos momentos, somos apresentados ao seu padrasto e a uma antiga amiga de infância, que também parecem se importar com ela, porém praticamente somem após uma única cena, deixando claro que só estiveram ali para fazer a narrativa avançar de alguma forma sem de fato acrescentar algo de valor.
O único problema gritante na mudança de comportamento da protagonista é que ela acontece muito rapidamente. Uma conversa aparentemente sem compromisso com um interesse romântico é o bastante para que tudo que estava guardado dentro dela comece a borbulhar. Faz sentido, de certa forma: quando nos sentimos entendidos pelos outros, também nos sentimos validados. E nessa validação, Sarah se deixa levar completamente. Mesmo assim, ainda seria interessante ver uma mudança mais gradual nas cenas anteriores, culminando com mais intensidade nesse momento.
Com uma história que poderia ter atingido maior êxito na sua execução, talvez os diversos plots abandonados e um terceiro ato não muito potente sejam os maiores fatores que realmente impediram o filme de chegar a um patamar mais elevado. “Entre Realidades” tem até potencial para se tornar um clássico cult no futuro, com uma legião de pessoas que se conectaram verdadeiramente com a trama, apesar de seus defeitos. Contudo, isso só o tempo irá dizer.