Primeira série da fabricante do iPhone explora os bastidores de um jornal matutino americano após um escândalo sexual afastar seu principal apresentador.
O ano de 2017 foi marcante para Hollywood. Não apenas pelo lançamento de filmes de sucesso, mas principalmente por um escândalo. Em outubro, reportagens do New York Times e da New Yorker revelaram que o até então premiado produtor Harvey Weinstein (responsável por filmes como “Shakespeare Apaixonado” e “Pulp Fiction”, entre outros), tinha um longo histórico de abuso contra mulheres. A promessa dele era alavancar a carreira daquelas que se submetiam às suas abordagens. Quem recusava, muitas vezes tinha como destino o ostracismo no mundo da fama. Gerando um efeito cascata, após a publicação das primeiras matérias, diversas mulheres criaram coragem para contar suas histórias, e, numa iniciativa de fortalecimento, criaram o movimento #MeToo, em oposição a violações sexuais no ambiente de trabalho. Claramente inspirada na trajetória de Weinstein, “banido” de Hollywood após a revelação dos seus atos, “The Morning Show” investe no mesmo tema. Adiciona também elementos como a ambição no mundo corporativo por poder e dinheiro, tornando difícil definir o certo ou errado na busca pelo sucesso.
Antes de mais nada, é preciso pontuar o movimento da Apple entrando no, cada dia mais disputado, mercado dos streamings. Tentando novas fontes de receita, atualmente dependendo quase exclusivamente da venda de iPhone’s, a empresa americana lançou em novembro de 2019, o Apple TV+ focando em produções originais. Essa foi a primeira série apresentada, que marca território através de um grande elenco contratado, com o trio de protagonistas formado por Jennifer Aniston, Reese Witherspoon e Steve Carell.
Concentrando sua narrativa nos bastidores de um jornal matinal que dá nome ao seriado – programa típico e de enorme audiência nos Estados Unidos –, somos jogados no meio de uma tempestade já nas primeiras cenas, quando o produtor executivo da atração Chip Black (Mark Duplass) é obrigado a demitir o apresentador Mitch Kessler (Steve Carell), após uma reportagem do The New York Times (alguma semelhança com a realidade?) mostrar acusações de assédio sexual contra várias funcionárias. Alex Levy (Jennifer Aniston), outra integrante da bancada, vê seu amigo em uma difícil situação, entretanto não deixa de aproveitar toda a confusão para tentar ter seu contrato renovado pela direção da UBA – emissora fictícia responsável pelo programa – e ter maior poder de decisão, inclusive podendo escolher seu novo companheiro de bancada.
Explorando com méritos o dia a dia da produção de um periódico matutino, porém não da mesma forma que a ótima “The Newsroom” – esta levando sua trama para uma atração noturna, com outro público e ritmo de realização –, quase pode ser comparada com “Game of Thrones”, mas aqui são jornalistas, produtores e diretores que usam de muita intriga e jogo político para subir na hierarquia da empresa (quase sempre não se importando com as consequências). Alex tenta não perder relevância na emissora depois de quinze anos apresentado o mesmo jornal. Mitch tenta voltar aos holofotes, negando as acusações recebidas. Nesse cenário, surge a jovem Bradley Jackson (Reese Witherspoon), profissional do interior alçada, de repente, à figura famosa nacionalmente após uma discussão, durante um protesto, se tornar um vídeo viral no YouTube. Cory Ellison (Billy Crudup), presidente da divisão de jornalismo da UBA, aproveita o “fenômeno Jackson” e, com ajuda do acaso, a transforma em companheira de apresentação Alex.
Construída em fases, a narrativa ganha mais destaque na sua segunda parte, quando Jackson, em seu espírito de jornalista investigativa, decide ir mais a fundo no caso de assédio sexual de Kessler dentro da UBA. Afinal de contas, todas os relatos ouvidos por ela eram verdadeiros, seus novos colegas sabiam dos fatos, porém nada fizeram para evitar? Se mantendo antenada nos acontecimentos da vida real, a obra segue a mesma esteira do recém-lançado “O Escândalo” para mostrar que, também numa emissora de TV – neste caso, a Fox News – existe uma cultura do abuso. Na maior parte das vezes, homens poderosos usam do seu cargo para forçar práticas sexuais com mulheres em posições inferiores dentro da hierarquia da instituição.
Há ótimos episódios, com destaque para o oitavo, em que vemos a construção de um dos crimes cometidos pelo personagem de Steve Carell e, ao final, ficamos impactados com a prática e com a vulnerabilidade da pessoa atacada. Assim, a história se torna atual e necessária. No sexto capítulo, igualmente de grande qualidade, durante a cobertura de um incêndio na Califórnia, vemos também reflexos do embate de poder entre a novata Jackson e a veterana Levy, outro ponto explorado pela série.
Apesar de apresentar um desfecho previsível, mas totalmente aberto para uma segunda temporada, “The Morning Show” mostra a disposição – e muito dinheiro – da Apple para investir na batalha dos streamings. Para ganhar esse jogo, será necessária muita luta. Só não vale fazer uso das mesmas condutas do passado, tão condenadas agora, para lucrar no futuro. Justamente o que Hollywood vem fazendo ao retratar em seus enredos casos de abuso sexual em empresas midiáticas.