Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

O Túmulo dos Vagalumes (1988): carta de amor à irmandade [CLÁSSICO]

Partindo de uma ótica extremamente intimista, o filme é uma das obras mais emocionantes a já ter vida nas telonas, dono de uma poderosa dupla de protagonistas e de atordoantes toques de realidade e melancolia.

Fundado em 1985, o Studio Ghibli se aventurou desde cedo na geração de inventivos contos animados. Criada por mestres do cinema tais como Hayao Miazaki (grande responsável pelo inconfundível mascote Totoro), a produtora japonesa não tardou em demonstrar grande habilidade na montagem de fictícias realidades, cativando crianças e adultos com narrativas universais que sempre desafiaram os limites da imaginação. Única em sua forma de contar histórias, a empresa sempre encontrou espaço para importantes temáticas em seus mundos mágicos, jamais hesitando em inserir mensagens atemporais – discursos que já abordaram, por exemplo, de solidão à tolerância – nesses ambientes onde tudo é possível. Não são todos os seus projetos, entretanto, que carregam essa abordagem fantasiosa, imprimindo com assuntos muito densos uma identidade melancólica e perturbadora. É o caso do inesquecível “O Túmulo dos Vagalumes” (baseado no livro homônimo de Akiyuki Nosaka), longa anti-guerra que, mesmo distante de algumas das tradições do estúdio, traz uma das jornadas mais emocionantes de toda a sétima arte.

Iniciada em 1939, a Segunda Guerra Mundial dividiu o mundo em dois eixos no que viria a se tornar um dos conflitos mais viscerais de toda a humanidade. Motivado pela ampliação de perigosos nacionalismos, o período presenciou a luta dos Aliados contra a expansão do tenebroso regime nazista, Estado que justificou campanhas massivas de ódio e destruição através de assustadoras “teorias” acerca da superioridade do povo ariano. Enquanto muitos condenaram as atitudes de Adolf Hitler, houve nações que preferiram conceder apoio, enxergando no forte militarismo alemão uma ponte para sua hegemonia. Dentro desse grupo encontrava-se o Japão, país pequeno e pouco desenvolvido que buscava a ampliação de seu poder. Seria desonesto ignorar, todavia, que alheios a essa decisão existiam inúmeros inocentes, famílias que se viram forçadas a pagar com a vida pelo orgulho imundo do governo japonês. Com o coração inflado, é esse o terrível pano de fundo que o genial Isao Takahata – outro importante fundador da companhia, aqui responsável pela direção e pelo roteiro – adota em sua comovente narrativa, elegendo uma maravilhosa dupla de irmãos como representantes dos incontáveis fantasmas deixados para trás.

Optando pelo rompimento com a linearidade, o filme permite que o protagonista Seita (voz de Tsutomu Tatsumi) revisite suas memórias, deixando-o livre para vagar pelos sombrios ecos de seu passado. Dado como morto desde os segundos iniciais, ele relembra a sofrida trajetória vivenciada ao lado da irmã mais nova, Setsuko (dublada pela adorável Ayano Shiraishi), atuando como um anjo da guarda que perdura entre o presente e o passado. Encarregado do avançar da trama (tal como um narrador, recurso que se torna literal em algumas passagens), ele acaba por conceder ao longa uma escala bastante intimista, dividido entre duas gigantescas tarefas. Perseverante em afastar a pequenina das atrocidades ao seu redor, o rapaz abdica de sua mocidade em nome da sobrevivência, tomando para si trabalhos árduos e cuidando de desgastantes trocas de esconderijo. Nas horas vagas, inventa jogos e concede guloseimas à frágil companheira, firme nas tentativas de simular o mais próximo possível de uma merecida infância. Hábil na administração desse contraste, o diretor constrói assim uma atmosfera mais que propícia para a exploração de um tocante diálogo entre a dor e a inocência, usando os carismáticos irmãos para iluminar seu sombrio e sufocante palco.

Extremamente corajoso, Seita não resiste em entender a enorme necessidade de internalizar seus sentimentos, pressionado pela responsabilidade de servir como modelo de força para a pequena. Doce e solidário, ele toma para si um peso incalculável, forçado a assumir funções paternas que desafiam seu papel como irmão. Orgulhoso, atropela, em alguns momentos, ordens e regras em nome de momentos de descontração, decisões que por vezes dificultam a situação da dupla mas extraem doses homeopáticas de felicidade. Do outro lado, Setsuko demora para absorver a total complexidade da situação que a cerca, mas acaba por reconhecer o enorme esforço do irmão mais velho. Nada que a impeça de exigir disposição e vivacidade do mesmo na hora de correr, nadar em riachos e se divertir no balanço, desafiando o horror da guerra com sua contagiante pureza. Sendo assim, as personagens se complementam de forma encantadora, conquistando o público com fofas interações (destaque para a emblemática caixa de balas de frutas) e se estabelecendo como um dos pares mais marcantes da história do cinema.

Seria incorreto imaginar, entretanto, que as infantis brincadeiras imprimem leveza e facilitam a angustiante jornada da obra, criando na verdade um necessário efeito oposto. Ousado, Takahata não abre mão da frieza que perdurou durante o período retratado, jamais aliviando a situação para as jovens figuras centrais. Juntas, elas fogem de perigosas explosões, atravessam hospitais permeados por corpos em decomposição, são sujeitadas à fome e doenças e se veem forçadas a enfrentar as mais insalubres condições de vida. Não bastassem as impactantes imagens e composições criadas pela magnânima técnica de desenho à mão – sendo especialmente memoráveis os choques visuais entre a escuridão e os insetos brilhantes -, o roteirista ainda se destaca pela inteligente abordagem de uma forma mais sutil de degradação. Trata-se da indiferença, presente em alguns dos que percorrem as ruas de Tóquio e na própria passagem do tempo, natural em evoluir e deixar o passado para trás (conforme deixa claro uma das emocionantes cenas finais). Por conta disso, o filme leva o espectador à reflexão ao discorrer sobre problemáticas não restritas aos tempos de guerra enquanto aprofunda a chocante contradição, entristecendo os momentos de alegria aparente ao reconhecê-los como meros lembretes do que foi injustamente tirado das mãos de crianças.

Extremamente difícil de se assistir, “O Túmulo dos Vagalumes” é um opressivo convite aos terrores plantados pela guerra em campos muito além dos de batalha. Partindo de uma visão extremamente pessoal com a qual a identificação é imediata, o filme equilibra com maestria a ingenuidade e o amadurecimento precoce exigido pela dureza dos conflitos armados, produzindo uma experiência conflitante e permeada por desconforto. Intensamente imersivo, a animação constrói através de uma surpreendente beleza estética e, principalmente, de alguns dos personagens mais apaixonantes da sétima arte, uma angustiante história sobre a força do afeto, capaz de espalhar pequenos focos de luz até mesmo nos momentos mais escuros da humanidade. De cortar corações, a obra é uma linda poesia para se manter vivo o seguinte questionamento: “Por que os vagalumes tem de morrer tão cedo?”.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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