Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 04 de fevereiro de 2020

The Good Place (2016-2020): suave na nave

A fantástica série de Michael Schur chega ao fim com um dos melhores finais do século XXI, fechando arcos de maneira bela e singela e provando que comédia pode ter enorme carga emotiva e humana.

Saturday Night Live”, “The Office”, “Parks and Recreation”, Brooklyn Nine-Nine”, “Master of None”… a rica lista de bons trabalhos de Michael Schur recebe mais uma obra fenomenal com “The Good Place”, que chegou ao fim no início de 2020, encerrando as quatro fantásticas temporadas num series finale que honra tudo o que a série se propôs, além de lançar uma onda de esperança sobre o potencial da humanidade.

A série cômica sobre quatro pessoas que morrem e vão para o “Lugar Bom” por engano (fato que culmina no ótimo plot twist do final da primeira temporada), onde precisam aprender a serem melhores para que, enfim, mereçam estar onde estão, conseguiu um invejável desenvolvimento dos seus seis personagens principais ao fornecer roteiros sem enrolação e que levam em consideração os acontecimentos e seus pesos nas jornadas pessoais de cada um.

Assim, a egoísta e auto sabotadora Eleanor Shellstrop (Kristen Bell, um poço de carisma); o indeciso e ansioso Chidi (William Jackson Harper, adorável); a invejosa socialite cheia de sentimentos mal resolvidos relacionados a sua família Tahani (Jameela Jamil); e o estúpido criminoso Jason (Manny Jacinto); conseguem, por meio de muitas discussões filosóficas sobre moral e ética, e uma infinidade de embates com entidades do além-vida, sofrerem profundas mudanças enquanto percebiam que tentar falsear atitudes não funciona a não ser que as transformações sejam reais e internas. O fato de que a série se propôs a discutir esses temas relevantes e ainda mantendo a alta qualidade humorística é digna de elogios e louvor.

Com tal êxito no roteiro, a série apresentou a fachada de comédia para ter a audácia de querer debater sobre a vida, a morte e suas complexidades. Ao ilustrar que o ser humano não é simploriamente definido como apenas “bom” ou “mal”, mas que cada um tem sua própria bagagem de eventos, traumas e personalidade que pesam no julgamento de suas ações, a obra consegue homenagear o que há de melhor em cada um de nós: a capacidade de superação. Tudo isso culmina na bela conclusão, onde fica claro que o importa não é ser perfeito, mas apenas tentar ser melhor hoje do que no dia anterior.

Os encerramentos para as jornadas de auto aprimoramento que a série trouxe para cada personagem, incluindo a praticamente onisciente Janet (o achado D’arcy Carden), são de uma beleza metafísica e metafórica que surpreendem em uma obra de comédia. A simplicidade de Jason ao descrever seus últimos atos ilustra um fechamento de ciclo que retoma um elemento da primeira temporada de maneira tão bonita que já iniciam as primeiras gotas da cachoeira de lágrimas que o episódio promete. A torrente se mantém durante a última tomada de Eleanor, que ilustra a união entre o sexteto até em seu figurino – num sutil uso de cores -, logo entrando na conclusão do arco do demônio Michael (Ted Danson, cheio de humanidade) onde, sem exposição barata, o seriado dá seu último recado de que nós podemos inspirar uns aos outros, e que nas pequenas ações corretas que decidimos tomar no dia a dia, superando a má vontade e a preguiça, reside a genuína evolução espiritual da humanidade – e o próprio Michael é um grande exemplo disso.

Uma série cômica que foi muito além de causar risos, “The Good Place” se destaca não só por discutir profundos temas humanos numa linguagem divertida, acessível e extremamente relevante, mas também por trazer tranquilidade a uma das questões que mais assola o psicológico da maioria de nós: o que acontece após a morte. Com um poder de inspiração ímpar, que no arco de cada personagem traz uma lição emocionante e bela, o seriado homenageia o potencial que cada um de nós tem de melhorar e, assim, inspirar outros a melhorarem. O incrível roteiro, a direção de arte magnífica e a química embasbacante entre os atores resulta num trabalho que merece – e deve – ser visto por todos.

Bruno Passos
@passosnerds

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