Emocionalmente carregada, temporada final desafia o espectador com uma melancólica jornada através das conquistas e dos erros de seu protagonista e consagra a produção como uma das mais significativas animações da história.
Seis anos atrás estreava o desenho “BoJack Horseman”, seriado criado por Raphael Bob-Waksberg que lançou a produtora Tornante no ramo das animações. Trazendo uma Hollywood alternativa na qual celebridades convivem com animais antropomorfizados, a produção exibiu um estilo crítico e irreverente logo em seus primeiros capítulos, assinatura que muito evoluiu com o passar do tempo. Dessa forma, não demorou muito para a dramédia conquistar um público cativo, espectadores que retornavam ano após ano para acompanhar as desventuras do protagonista equino. Por conta disso, o anúncio de que sua sexta temporada seria a última pegou muitos de surpresa, assustando os que julgavam ser cedo para se despedir do programa. Indo na contramão de intermináveis atrações, entretanto, a Netflix comprova ter tomado uma sábia escolha, entregando um desfecho digno que honra uma bela, mas intensamente conturbada, jornada.
Após uma nova rodada de erros terríveis, Diane (Alison Brie) decide que é chegada a esperada hora de BoJack (Will Arnett) passar por uma reabilitação. Forçado a enfrentar antigas mágoas e poderosos vícios, o astro de Horsin’ Around (show televisivo que o popularizou nos anos 90) encontra o que parece ser sua última chance de superação, adentrando meses de esforço e abstinência. Após incontáveis levas de declínio moral, estaria essa conquista dentro dos alcances de nosso protagonista? Seria ele capaz de subverter suas degradantes escolhas de vida? É inevitável que essas questões permaneçam com o espectador, acompanhando-o pela agridoce trajetória que constituem os episódios finais. Vinda de uma obra que sempre soube mesclar com perfeição um humor ácido e toques dramáticos de existencialismo, tal despedida não poderia ser diferente.
Necessariamente mais extensa que as demais temporadas, a conclusão conduz uma tumultuada “montanha-russa de emoções”. Para tal, a conclusão de BoJack foi devidamente dividida em dois segmentos, porções lançadas com um certo intervalo de tempo e que carregam tons e progressões opostas. Se a primeira metade apresenta leveza, apresentando uma otimista elevação da figura central, o segundo pedaço revisita o lado sombrio do cinzento “espectro Horseman”, lembrando que certas rachaduras são difíceis de consertar. Indo mais a fundo, é extremamente gratificante presenciar o intérprete de Secretariat (outra de suas façanhas dentro do universo fictício) aprender com seus deslizes e substituir as expressões cênicas pela arte de ensinar, sendo igualmente impactante a melancolia que beira o seu cancelamento (termo conferido às celebridades que, ao romper com a ética, destroem sua imagem).
Embora impressione por ser emocionalmente carregado, o ano final ainda se destaca pela forma como retoma diferentes debates acerca dos bastidores do entretenimento hollywoodiano. Através de situações absurdas, a série se reafirma pela última vez como referência no uso da comédia para efeito crítico. Prova disso são as divertidas interações entre Mr. Peanutbutter (Paul F. Tompkins) e sua noiva Pickles (Julia Chan) e a hilária participação de Margot Martindale, exemplos que, ao abordar de forma bem humorada assuntos como assassinato e adultério, reforçam a temática da absolvição de celebridades sempre presente no DNA da animação. Como se não bastasse, é interessante perceber a universalidade dos discursos aqui abordados, comentários que vão além dos grandes líderes da cultura pop. É o que acontece com Todd Chavez (Aaron Paul), comovente e engraçado nas tentativas de se reconectar com a mãe, e com a infame dupla de jornalistas que busca o sucesso na revelação dos podres de BoJack – inteligente indireta às contradições midiáticas, por vezes preocupadas com a repercussão em detrimento da justiça -, retratos da inocência e da ganância presentes em cada um de nós.
Magistralmente escrita, a série também é engrandecida pela direção, reservando momentos que rompem com as tradicionais sitcoms animadas para produzir passagens inesquecíveis. Se no passado já fomos encantados com episódios como “Peixe fora d‘água” e “Churros grátis” – curtas-metragem respectivamente sustentados pela ausência de falas e por um monólogo -, a última temporada repete as exemplares técnicas das anteriores e não abandona a originalidade em nome da urgência em concluir a história. É o que acontece no segundo capítulo da maratona, no qual o desgaste de Princesa Caroline, (Amy Sedaris) diante das novidades maternas em sua rotina, é transmitido de forma inquietante através de uma repetitiva sonoplastia, bem como nas cômicas tentativas de Diane em escrever seu livro de memórias, ocorrências registradas a partir de um excelente e diferenciado trabalho de arte. Além disso, seria injusto ignorar o maravilhoso jantar dirigido por Amy Winfrey, evento que, ao reunir rostos queridos pelos fãs de carteirinha, emociona e rende incríveis diálogos sobre legado e mortalidade.
Por fim, deve-se apontar como a finalização do arco central constrói uma experiência ímpar. Extremamente complexo, BoJack sempre teve em uma infância problemática as “justificativas” para sua questionável personalidade. Muito solitário desde os primeiros anos de vida, ele nunca deixou de depender dos amigos mais próximos, mesmo que ao exigir tal aproximação os afundasse através de suas falhas morais. Alcoólatra e viciado em drogas, suas tentativas em mascarar sua tristeza significaram erros irreversíveis, entre os quais podemos apontar o abominável acontecimento em Novo México e o dramático destino de Sarah Lynn (Kristen Schaal). Ao perceber que é capaz de encontrar em seus traumas importantes lições para difundir aos demais, entretanto, passa a vivenciar uma deliciosa restauração, reascendendo em nome da necessidade de se encaixar em seu novo propósito.
Com uma bruta reviravolta, todavia, somos inundados por um duro, e extremamente necessário, toque de realidade, forçados a entender a importância de arcar com desvios (mesmo que signifiquem até mesmo a anulação de méritos do passado). Todos são dignos de redenção? Ao permitir que as coadjuvantes evoluam, isolando o protagonista na difícil batalha contra seu fraturado caráter, a produção eleva essa dúvida ao máximo, levando a impactantes reflexões que ganham sobrevida ao traduzir simultaneamente o doentil mundo das celebridades, no qual constantemente buscam-se inspirações, e o triste cotidiano de personalidades mundanas. Finalmente, encontra um perfeito equilíbrio entre superação e castigo, trabalhando um “soco no estômago” que atua como um devastador, e igualmente esperançoso, final.
Concluindo com maestria uma das melhores séries animadas da história, a sexta temporada de “BoJack Horseman” revisita as raízes e os amplificadores dos desastres provocados por seu descontrolado protagonista. Transitando com sucesso entre a esperança e a melancolia, ela invoca o espectador assíduo a colocar na balança os avanços e as involuções do depressivo homem-cavalo, forçado a exercer a desconfortável função de juiz. É, além disso, um convite aos fãs a uma emocionante despedida que finaliza primorosamente a sofrida trajetória de todas as suas personagens, consagrando uma visceral análise das imperfeições humanas. Tem-se assim o fim de uma bela animação que nunca faltou com coragem, fosse através de sua original proposta, ou a partir da ousadia em responsabilizar ídolos erroneamente engrandecidos pela sociedade!