Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 04 de fevereiro de 2020

Fleabag (Prime Video, 2016-2019): tão agridoce quanto a vida

Um relato cômico de uma mulher tão comum e real quanto emblemática.

“Fleabag”é uma tragicomédia sobre a vida adulta. A aclamada série do Amazon Prime Video narra os percalços da jovem Fleabag (Phoebe Waller-Bridge) e seus conflitos existenciais à medida que situações como o luto, a paixão e a dificuldade de inserção no mercado de trabalho se interpolam no caminho da protagonista. Sob primeira análise, isso basta para definir a narrativa, posto que a trama é simples, sem nunca ser simplória. O grande mérito do seriado, contudo, e o que o faz ser mais emblemático e credor dos inúmeros prêmios (SAG, Emmy, Globo de Ouro…) a ele endereçados, é a forma pela qual a também roteirista Phoebe Waller-Bridge decide contar sua história.

Dessa maneira, munida de um humor ácido e tipicamente britânico, sua escrita brinca com circunstâncias cotidianas, mas visitadas por um olhar feminino ferrenhamente crítico, denunciando estigmas autodepreciativos que muitas mulheres carregam consigo ainda hoje, enquanto buscam a felicidade e a solitude. A protagonista é assumidamente narcisista, ninfomaníaca, desbocada, ladra, e, por sua excelente construção de personagem, um dos melhores anti-heróis que surgiram ultimamente – o que é o triunfo pela bela manutenção de carga dramática por parte da atriz principal. Em nenhum momento ela nega quem é, pelo contrário, assume a “mea culpa” de tudo o que faz, aspecto que permite a série ganhar o público: ao fazer o espectador amar odiar alguém que deixa claro que, no fim das contas, só está tentando sobreviver. Dia após dia e sem autopiedade.

Além disso, a hábil direção de Harry Bradbeer (“Killing Eve”) rende sacadas muito divertidas, destacadamente a constante quebra da quarta parede, quando a personagem fala diretamente com a câmera, desintegrando expectativas plausíveis da audiência, de forma a tornar a produção, no mínimo, desconfortavelmente hilária. A quebra dos silêncios excessivamente incômodos por um timing cômico bastante proficiente rende momentos sensacionais – com direito a sequências musicais, inclusive. Tal habilidade diretiva é fortalecida por uma equipe também competente no que concerne à montagem e à direção de fotografia: sobreposição e alternância de planos que situam e transitam o tempo entre o psicológico e o cronológico na narrativa, além do uso recorrente de zooms in e out com o intuito de mitigar os cortes e dinamizar o formato da obra.

Assim, a série carrega com muita competência o ritmo narrativo durante as suas duas (infelizmente breves) temporadas. A obra apresenta uma primeira parte mais melancólica e mais focada em um arco de apresentação da Fleabag, com alguns dos motivos que moldaram o seu estado de espírito atual e sua busca por independência. A segunda temporada, entretanto, vem com um maior alívio cômico à princípio, trazendo uma protagonista fortalecida e pronta para novas empreitadas – que acabam se mostrando tão contundentes quanto as anteriores. Vale destacar, ademais, a química exorbitante entre ela e o ator coadjuvante que aparece na segunda metade do seriado, Andrew Scott como o “Padre gato”. Ele rouba todos os planos em que aparece para si e ganha quaisquer corações que ousarem conhecer o carisma do personagem.

Entre excelentes diálogos sobre solidão, sexo, autonomia e a relação intrínseca e, muitas vezes, pouco percebida, entre esses conceitos, “Fleabag” conquista o público gradativamente a cada episódio, escancarando o quão agridoce pode ser a realidade. É brilhante que uma obra faça isso sem perder sua leveza. Em uma sociedade cada vez mais mascarada por filtros de estéticaé fantástico poder ver a vida retratada de forma crível, na carne e na íntegra em seus altos e baixos. Sem o torpor ébrio dessa, muitas vezes falsa, positividade. E isso a obra faz muito bem: abraça suas estranhezas e dificuldades não com resignação, mas com resiliência.

Lígia Amora
@rapadura

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