Saído de loucuras dignas de um sonho, o curta é mais uma demonstração das bizarrices presentes na filmografia do diretor.
Conhecido por narrativas repletas de bizarrices, David Lynch sempre foi extremamente autoral. Do monstruoso recém-nascido de “Eraserhead” (longa de estreia eternizado como cult) aos mistérios da excêntrica cidade de “Twin Peaks” (seriado que conquistou legiões de fãs), ele se especializou na construção de experiências anormais, sempre priorizando o lúdico e o sensorial em seus projetos. Dono de uma assinatura inconfundível, investiu na subversão de gêneros cinematográficos, prática que repete com sucesso no curta “What Did Jack Do?”.
Lançada pela Netflix no aniversário do aclamado cineasta, a produção realiza uma deliciosa homenagem ao cinema noir (já antes revisitado em “Veludo Azul“), conduzida por uma premissa tão estranha quanto às demais criações de seu autor. Ambientada em um único cenário, uma cabine de trem pouco acolhedora, a obra apresenta um curioso interrogatório entre um detetive (interpretado pelo próprio Lynch) e o macaco Jack Cruz, símio suspeito de assassinato. Feito em preto e branco e apresentando “falhas” que pipocam na tela tal como nos exemplares mais antigos, o filme não tarda em resgatar o saudosismo de grandes clássicos criminais, transportando o espectador para o que mais parece ser uma investigação extraída de um sonho.
Inicialmente muito confusa, bastam poucos minutos para que se revele uma trama elaborada, narrativa completamente conduzida pelo diálogo assinado por David. Não que tudo soe completamente plausível e todas as dúvidas sejam neutralizadas – caso contrário não estaríamos falando da filmografia do diretor -, mas é interessante notar como a frenética troca de falas permite a construção de uma complexa intriga, captando a atenção até mesmo dos mais desavisados. Para que isso ocorra, é claro, segue-se uma abordagem pouco usual, de modo que não se encontram dramatizações acerca do que é proferido pelas protagonistas, aspecto que não só demonstra a segurança de Lynch em relação ao seu roteiro como também reserva ao espectador a função de imaginar as situações citadas. Além disso, percebe-se um uso bastante inteligente de ditados e piadas populares – as quais, com direito à famosa “por que a galinha atravessou a rua?”, foram bem adaptadas para as legendas em PT-BR -, decisão que não só adoça a experiência com bons alívios cômicos como também acaba por justificar o uso de animais.
Em relação à dupla principal, merece destaque a maneira como suas caricaturas a familiarizam frente ao público, convencendo-o mesmo que um de seus membros seja um macaco. Dessa forma, Lynch cativa no papel de um investigador sério e meticuloso, encurralando seu adversário com perguntas ácidas e que o pressionam a revelar seus segredos, enquanto o nêmesis não fica muito atrás. Dublado por uma voz comicamente editada, e “falando” a partir de um antiquado efeito especial que engrandece a nostalgia do projeto, a figura de Jack Cruz já merecia elogios pelo simples fato de estar usando um terno, conseguindo ir além com a determinação que apresenta ao se defender no bate-boca. Arisco, ele desafia a fofura de um bichinho em tela com comentários bastante agressivos, tecendo no pensamento do público uma indecisão que se mantém até o final – seria ele capaz de realizar o crime pelo qual está sendo acusado?
Como se não bastassem os absurdos presentes em cena, o diretor ainda agracia quem o assiste com uma divertida música escrita em parceria com Dean Hurley, canção que dialoga com as possíveis motivações de Jack (amplificando ainda mais as incógnitas) e que é brilhantemente performada pelo símio. À apresentação, por fim, soma-se uma incrível trilha sonora, esta que, embora presente apenas no desfecho, faz jus aos grandes filmes de detetive. Completamente maluco, “What Did Jack Do?” é mais um manifesto da grande loucura presente na mente de David Lynch, diretor que nunca temeu o potencial afastamento de uma parcela do público diante de suas bizarrices. Extremamente autoral, é uma deliciosa homenagem ao noir que, embora simples, merece ser vista.