Série da HBO inspirada nos livros da saga "Fronteiras do Universo" de Philip Pullman acerta em sua primeira temporada como combinar uma experiência divertida a uma profundidade que abraça temas sérios e desafiadores.
Em 2007, naufragou a tentativa de levar para o cinema a Trilogia “Fronteiras do Universo” escrita por Philip Pullman (“A Bússola de Ouro“, “A Faca Sutil” e “A Luneta Âmbar“). A adaptação do primeiro livro sugeriu erroneamente que a história seria descompromissada e voltada apenas para um perfil de público em razão do tom excessivamente infantil e do roteiro confuso (para alguns outros também por causa dos efeitos visuais duvidosos premiados pelo Oscar). Entretanto, a obra pensada pelo autor tem um caráter mais sério, complexo e ousado do que aparenta, algo captado pela série da HBO “His Dark Materials“.
A partir do comando da produção do próprio escritor, de Jack Thorne e de Tom Hooper, a narrativa parte de Lyra (Dafne Keen), uma menina órfã que foge da Faculdade Jordan, onde cresceu, para procurar um amigo desaparecido, sequestrado misteriosamente junto com outras crianças. Durante a jornada, ela conta com a ajuda de um povo chamado gípcio, um urso com armadura, feiticeiras e o aeronauta Lee Scoresby (Lin-Manuel Miranda), mas também enfrenta uma relação conturbada com o tio Lord Asriel (James McAvoy) e a misteriosa Marisa Coulter (Ruth Wilson).
O mundo habitando por Lyra não é tão diferente do nosso. Mas uma das diferenças mais nítidas é a existência de um daemon, animal que periodicamente muda de forma (até se fixar em uma única espécie) e se vincula a um ser humano como parte da sua alma – esse vínculo é tão poderoso que eles não podem se afastar e o que um sente impacta no outro. Outro traço específico presente ali é o Pó, uma partícula desconhecida, temida e também cobiçada que se fixa nos humanos na puberdade caindo do céu e desperta curiosidades, medos e conflitos naquela sociedade – é o embate entre compreendê-lo e destruí-lo que move a tensão entre aqueles que o veem como a possibilidade de conquistar mais conhecimento e liberdade e outros que o atacam como símbolo de pecado. Tais elementos fantasiosos são expressivos porque se comunicam com a realidade do espectador, evocando discussões filosóficas instigantes acerca da essência humana e do papel da religião.
Partindo desses aspectos centrais, a série constrói um universo fantástico que não é hermético e fechado em suas próprias regras. A riqueza do roteiro é saber extrair as múltiplas potencialidades existentes no material original para trabalhar noções como política, magia, ciência, religião e filosofia de maneira coesa dentro de unidade que faz sentido. Tais questões perpassam, por exemplo, a caracterização do Magisterium como a instituição de poder autoritário que oprime a população e proíbe reflexões sobre o Pó por considerá-las heréticas; o potencial libertador do saber na Faculdade Jordan e nas pesquisas particulares de Lord Asriel que contesta o status quo e leva a ações coercitivas do Magisterium; um pensamento científico específico relacionado à ligação entre daemon e humano e ao significado do Pó que proporciona experimentos próprios; e uma dimensão mágica composta por feiticeiras, ursos falantes com rivalidades (o oposição entre Iorek e o Iofur) e outros mundos.
Justamente ao indicar o multiverso que preenche sua história, a obra se expande para outros caminhos capazes de serem explorados pela segunda temporada. Especialmente no que diz respeito ao arco envolvendo o garoto Will, há muito que se desenvolver já que sua trajetória esteve durante muito tempo pouco conectada à jornada de Lyra: ele é solitário na escola e tem um pai desaparecido, aparentemente, também envolvido em projetos semelhantes aos de Asriel e uma mãe com transtornos psicológicos que precisa de seus cuidados; por conta dessas dificuldades, parece estar num segmento muito à parte da narrativa central, encontrando-se apenas nos últimos episódios. Ainda assim, existe uma roupagem de aventura fantasiosa e mistério em torno do que acontece com as crianças raptadas e os percalços enfrentados pela protagonista que permite, inclusive, abordar temas variados: a inocência juvenil diante de um perigo grandioso, o embate geracional decorrente das relações entre adultos e jovens e os dilemas do amadurecimento.
Nada disso seria possível se não houvesse um trabalho eficiente de design de produção para a criação de ambientes tão diversos e de efeitos especiais para dar vida ao fantástico. A jornada da menina inclui atravessar espaços de características facilmente reconhecíveis e donos de identidades muito peculiares, como a imponência opressiva dos salões espaçosos do Magisterium, a elegância discreta e culta da Faculdade Jordan com seus aposentos repletos de livros e pesquisas, a moradia dos gípcios em embarcações nos mares, a cidade litorânea próximo ao Norte e a própria região norte gélida e sob as luzes da Aurora Boreal. Quanto aos efeitos, eles são cruciais para estabelecer com naturalidade, principalmente, a interação entre os daemons e seus humanos e os ursos e a sensação de que os animais de fato estariam em cena ao invés de serem apenas criações artificiais.
O desenvolvimento temático das gerações em conflito transparece igualmente no que o elenco tem a oferecer de performances dramáticas. Em virtude do ainda pequeno espaço destinado a Amir Wilson interpretando Will, cabe a Dafne Keen conceber Lyra como uma jovem impetuosa, sempre disposta a aventuras que recorre à sua lábia perfeita para conseguir o que quer (exemplo disso é como ganha a alcunha de Lábios Mágicos). Ela está em perfeito contraste com Ruth Wilson encarnando Marisa Coulter, e James McAvoy como Lord Asriel, ambos interpretando indivíduos que buscam mascarar seus sentimentos em prol dos objetivos pragmáticos de suas vidas e trabalhos – chegam ao ponto de abrir mão de relacionamentos emocionais por parecerem menores diante das realizações que julgam tão necessárias para a sociedade.
Sendo inclusive capaz de oferecer um cliffhanger atrativo para uma nova temporada, “His Dark Materials” tem potencial para futuramente enfraquecer da memória recordações da infeliz adaptação de “A Bússola de Ouro“. Graças à criação de personagens ambíguos, um universo capaz de crescer ainda mais e a abordagem de temas desafiadores para a reflexão dos espectadores, a série da HBO faz jus aos livros de Philip Pullman e comprova como a diversão pode vir mesclada a questões mais densas que fazem pensar.