Adaptação de Tom Hooper para famoso musical da Broadway sofre com efeitos medíocres e momentos horripilantes não intencionais, mas tem potencial grande de ser o próximo clássico cult.
Em um ano com tantos eventos cinematográficos bons e de grande proporção, estava estranho demais não haver uma verdadeira bomba atômica em forma de filme até então. A história mostra que o melhor (ou pior) estava guardado para as últimas semanas de 2019 na forma da adaptação de Tom Hooper (vencedor do Oscar de Melhor Diretor por “O Discurso do Rei”) para “Cats”, famosa obra da Broadway criada por Andrew Lloyd Webber (que também é o compositor oficial do longa), e que por sua vez se inspirou em um livro de poesias de T.S. Elliot para construir a trama.
Dando crédito ao que deve ter crédito, por incrível que pareça, a história de “Cats” é mais clara no filme do que no teatro, ainda que tenha buracos. Uma gata chamada Victoria (Francesca Hayward) é abandonada por uma mulher em um beco de Londres. Lá, Victoria encontra um grupo de gatos curiosos com seu abandono, os gatos Jellicle. Apesar de não explicar o motivo para tal nome, a trama dá a entender que estes felinos são angelicais, e não só por terem mais de uma vida para viver. E cada gato tem o seu verdadeiro nome, explicam em uma canção, o que também justifica os motivos para a maioria dos gatos serem nomeados para homenagear o som do ser humano espirrando, ao que parece.
Entre canções e coreografias, os Jellicles explicam para Victoria que eles estão aguardando o evento do ano: a vinda da Velha Deuteronomy, uma gata idosa que tem o poder de escolher qual gato irá para o Paraíso dos Sonhos (leia-se “morrer à la Padre do Balão”) para, enfim, reencarnar na vida que sempre sonhou em ter. A decisão é tomada por Deuteronomy após uma apresentação musical feita pelos felinos elegíveis a ir para o paraíso. É aí que entra o vilão Macavity (Idris Elba), que também possui poderes sobrenaturais e desaparece com os gatos concorrentes num passe de mágica, mantendo-os presos em um barco no meio do Rio Tâmisa, para que ele seja a única opção possível para a “escolha Jellicle” de Deuteronomy.
Pobre deste elenco cheio de talentos desperdiçados. A cantora e atriz oscarizada Jennifer Hudson interpreta a miserável Grizabella em sua rendição mais sofrida até agora, com direito a interpretação da música “Memory” da forma mais suicida já ouvida. E o que dizer de Rebel Wilson e James Corden, que servem como saco de pancada das piadas de gordo mais cansadas que existem e também protagonizam as cenas mais esteticamente horripilantes do longa: o número musical das baratas com rosto de gente que viralizou no Twitter e uma parte totalmente dedicada ao hábito dos animais vira-latas comerem lixo!?
A cantora Taylor Swift também está lá só para garantir a vaga deste filme no Oscar de Melhor Canção Original – pena que a música Beautiful Ghosts não chega nem perto do potencial chiclete do musical original. A gata interpretada pela diva pop, Bombalurina, só surge na trama para cantar sobre como Macavity é um gato mau e sedutor, e depois simplesmente desaparece, em um erro de continuidade grotesco.
Pequenas descrições como essas explicam as reações explosivas dos críticos de cinema, que já geraram uma antecipação do resto do público de assistir a “Cats” com o propósito de odiá-lo com força. Somado às cenas vazadas na internet, pronto. O mundo estava mais do que preparado para entrar na sala do cinema já botando fogo na cabine de projeção. Mas a experiência poderia ter sido muito mais estapafúrdia.
A comédia de “Cats” é tão involuntária e absurda, com direito a piadas de “tio do pavê” sobre gatos, que a experiência fica até divertida. E, bom, não dá para dizer que não há uma tentativa de incorporar técnica no longa, considerando que a Velha Deuteronomy (Judi Dench) tem direito a um momento de quebra de quarta parede no número final, ensinando como um gato deve ser tratado. Tirando a bizarrice, as dicas são, de fato, úteis para quem tem dificuldade em lidar com felinos. Uma pena que Tom Hooper não entendeu que a indústria cinematográfica não funciona como a dos videogames, e que você não pode finalizar os efeitos especiais um dia antes da estreia para a imprensa, como ele admitiu ter feito, ou apenas relançar a versão “definitivamente finalizada” uma semana depois do lançamento para o público geral.
Um filme pode ser divertido e puro entretenimento sem ser tecnicamente bom. Que fique bem claro que “Cats” está bem longe de ser bom, mas não por isso ele deixa de render uma experiência cinematográfica marcante. E mesmo com a edição e a finalização embaraçosas que teve, o filme abraça uma certa cafonice intrínseca do musical da Broadway e não se envergonha disso. Pelo contrário, ela faz questão de elevar esse aspecto peculiar do teatro e transformar em um filme colorido, com bailarinos incrivelmente competentes e que também aderem à bizarrice sem pudor – são humanos vestidos de gatos, afinal. O elenco pode estar fazendo o máximo para se afastar da produção após o fracasso de crítica, mas não dá para afirmar que eles exibiram qualquer vergonha em seus papéis. Talvez a obra não tivesse sido recebida com tanta ojeriza se tivesse sido uma animação em vez de um live-action.
Mesmo que não seja intencional do estúdio, “Cats” é um dos filmes que está fadado a se tornar um clássico cult, assim como muito cinéfilos ressignificaram o trash independente “The Room” na última década. Se um filme que mais parece uma batida de caminhão em câmera lenta de tão desastroso conseguiu encontrar seu lugar ao Sol, então um longa sobre gatos humanoides angelicais tem grandes chances de ter sua chance de ser aclamado em exibições tarde da noite para fãs descompromissados, que só querem beber e cantar a canção do mágico Senhor Mistoffelees a plenos pulmões sem serem julgados (e sem pagar tão caro para ver um musical).