Após a controvérsia envolvendo "A Ascensão Skywalker", a série se propõe a resgatar a essência das histórias de "Star Wars", e se mostra como o melhor produto da franquia em 2019.
Quando “The Mandalorian” estreou em novembro, havia muita coisa em jogo. A produtora Lucasfilm ainda tentava encontrar a melhor maneira de lidar com as críticas recebidas por “Star Wars: Os Últimos Jedi” e pensar em seu filme seguinte, que viria a ser o desastroso “A Ascensão Skywalker“. Acima da produtora, a Disney acompanhava preocupada o desenrolar dessa história, já que seu serviço de streaming próprio, o Disney Plus, seria lançado já tendo a primeira série em live-action de “Star Wars” como carro-chefe. Esta empreitada de Jon Favreau precisava dar certo. E deu, para alívio e satisfação geral.
Repleta de chavões e criaturas que parecem ter sido criadas especificamente para se tornarem memes, “The Mandalorian” é um sucesso. É raro entrar nas redes sociais sem se deparar com imagens da Criança (conhecida pela internet como Baby Yoda) aprontando alguma travessura encantadora, ou ver alguém usando expressões como o lema mandaloriano “This is the way” (“É como deve ser“) ou “I have spoken” (“E tenho dito“, em tradução livre), usada frequentemente por um dos peculiares coadjuvantes. Para os fãs, cada episódio é um deleite, com diversas referências a acontecimentos dos filmes e das séries de animação e objetos familiares.
O maior trunfo da série, no entanto, está em seu protagonista, um caçador de recompensas mandaloriano, um pistoleiro solitário que percorre a Orla Exterior da galáxia em busca de serviço. Interpretado por Pedro Pascal, ele é um homem de pouquíssimas palavras e que nunca tira seu capacete – algo essencial dentro do credo mandaloriano, que ele segue desde criança. Conforme a trama se desenrola, vemos os traumas e percalços que tornaram o Mandaloriano a pessoa que ele é, de lembranças de uma infância em tempos de guerra à forma com que lida com seus serviços, e até a sua relação com os demais mandalorianos.
Apesar de taciturno, o Mandaloriano é um personagem fácil de se gostar tanto para os espectadores, quanto para os coadjuvantes. Ao longo de sua jornada pelos quadrantes esquecidos da galáxia mais preocupada com política, ele consegue a simpatia de diversos seres que se dispõem a ajudá-lo em suas missões, como o caricato ugnaught Kuill (Nick Nolte), a ex-soldado da Aliança Rebelde Cara Dune (Gina Carano) e o droide assassino IG-11 (Taika Waititi). Pelo caminho ele precisa lidar com ex-chefões imperiais como o Cliente (Werner Herzog) e moff Gideon (Giancarlo Esposito) até colegas de profissão que só querem um concorrente a menos.
Esta não é a primeira vez que Favreau trabalha com “Star Wars”; ele já havia dado voz ao guerrilheiro mandaloriano Pre Vizsla na série de animação “The Clone Wars“, criada por George Lucas e Dave Filoni. Para “The Mandalorian”, ele trouxe de volta o próprio Filoni, tido como o herdeiro natural de Lucas e que já havia desenvolvido a subtrama mandaloriana também em “Star Wars Rebels“. Ninguém melhor para ajudar a ampliar este universo tão rico e cheio de possibilidades. Para a direção, o maior nome é Taika Waititi, já consagrado por seu trabalho na Marvel Studios; de resto, apenas diretores emergentes, mas já vacinados, como Deborah Chow (que será a responsável pela série de Obi-Wan Kenobi com Ewan McGregor), Rick Famuyiwa e Bryce Dallas Howard, além do próprio Filoni fazendo a transição de animação para live-action.
Sem as amarras da grade horária televisiva, Favreau e Filoni optaram então por desenvolver a narrativa da série em um formato fora do comum, com oito episódios por temporada e cada um com duração de cerca de trinta minutos, podendo ser mais ou menos dependendo da necessidade de cada diretor para contar a história que cada capítulo pede. Um experimento diferente, mas que ainda precisa ser definido de forma mais clara pelos produtores e roteiristas. Ao longo da temporada, não é raro sentir que certos episódios poderiam ter sido melhor trabalhados, enquanto outros são completamente desnecessários. Foi uma pena, por exemplo, ver uma atriz do calibre de Ming-Na Wen ser desperdiçada no papel da assassina Fennec Shand em um episódio supérfluo como O Pistoleiro, que nada fez para levar a narrativa do Mandaloriano adiante ou expandir o universo da franquia.
Mas a dupla acerta ao basear a construção da estética da série em dois pilares centrais: o infame Especial de Natal de “Star Wars” (que marca a primeira aparição de um mandaloriano na franquia, em 1978, e é em si uma experiência quase cult) e os spaghetti westerns de Sergio Leone. A própria aura do Mandaloriano é quase idêntica à do Homem Sem Nome de Clint Eastwood nesse gênero: homens definidos por sua quietude, que mal transparecem emoções mas são capazes de alternar momentos de brutalidade e empatia de acordo com a situação – muito a crédito de Pascal, que faz uso de seu capacete como Eastwood faria de seu chapéu para se comunicar sem fala.
Outro ponto que colabora para a construção do Mandaloriano é a trilha sonora do ganhador do Oscar Ludwig Göransson. O desafio de assumir qualquer obra de “Star Wars” nunca é fácil para um compositor, pois a sombra de John Williams é grande. Mas Göransson tira o desafio de letra, criando um tema marcante para o protagonista, que alia o aspecto tribal da cultura mandaloriana a toques mais modernos e eletrônicos. A ruptura com o modelo clássico de Williams não é total, mas inspira um frescor grande à série – algo que poderia já ter sido feito nos spin-offs da franquia, principalmente “Han Solo: Uma História Star Wars“.
Em um momento bem delicado, principalmente em vista das avaliações negativas e da repercussão que “A Ascensão Skywalker” vem tendo com sua presença nos cinemas, “The Mandalorian” é o lado bom do que “Star Wars” tem para oferecer em 2019: uma história sobre transformação e moralidade em um mundo no qual contemplar ambas é andar em uma linha muito tênue. Ainda que as questões de planejamento de longo prazo também existam na série, principalmente com episódios totalmente descartáveis no meio da temporada, a distância do núcleo principal desse universo é extremamente bem vinda. Para que a poeira baixe nessa galáxia muito, muito distante, esse é o caminho.