Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de janeiro de 2020

Segredos Oficiais (2019): a espiã que tentou evitar uma guerra

Com uma narrativa comandada de forma envolvente e que faz jus aos fatos, filme dirigido por Gavin Hood traz uma reflexão bem realizada sobre a história da britânica que expôs segredos de estado numa tentativa de evitar a guerra do Iraque.

“Segredos Oficiais” conta a história real de Katherine Gun (Keira Knightley), agente britânica da GCHQ (Sede das Comunicações do Governo, em tradução livre) que atuava principalmente coletando informações como tradutora de mandarim. Em 2003, ela e seus colegas receberam ordens de um documento americano-britânico para buscarem dados que pudessem ser utilizados para chantagear seis países a votarem a favor da guerra do Iraque. Reconhecendo tanto a ilegalidade daquela ação quanto do conflito em si, Katherine divulgou o material ao público, assim quebrando com o Ato de Segredos Oficiais e resultando em um processo que a colocou em evidência e pôs em risco a segurança daqueles ao seu redor.

O filme explora bem seu tema principal: ser leal a um país é ser leal ao regime ou aos seus cidadãos? A protagonista decide tornar o documento público, pois acredita, ainda que ingenuamente, ser possível impedir o conflito de alguma forma. Sua única preocupação, do momento que recebe o e-mail até quando decide entregá-lo a colegas ligados ao movimento anti-guerra para que seja publicado, é tentar proteger a vida das pessoas que se encontrarão no meio do acontecimento, de soldados a civis. Por fazer parte de uma agência que coletava informações secretas para os governantes britânicos, Katherine sabia que todo o argumento belicista inicial era arbitrário e beirava a ilegalidade. Presa nesse dilema moral por pouco tempo, a mesma não hesita em seu curso de ação, momentaneamente não considerando nem mesmo o fato de que era casada com um imigrante muçulmano e que as autoridades tentariam a sua estadia no país como retaliação. Seu jeito imediatista, mas também baseado em uma bússola moral de se admirar, faz com que a audiência sinta uma conexão com a personagem de Knightley, que entrega uma ótima atuação.

Composto por um elenco de faces muito conhecidas, há também o núcleo dos jornalistas do “The Observer” com Martin Bright (Matt Smith) no centro. Acompanhamos enquanto a redação decide se irá, de fato, publicar os dados e como os advogados de Katherine, liderados por Ben Emmerson (Ralph Fiennes) montam sua defesa. Uma das partes mais interessantes é o desenrolar dos pulos legais que ambos os núcleos necessitam dar para conseguir definir sua matéria e proteção, respectivamente. Por ser uma quebra do Ato de Segredos Oficiais, nenhuma fonte conhecida dos jornalistas está disposta a confirmar ou negar a veracidade do documento, por saberem que poderiam ser presos por isso; e os advogados devem construir uma estratégia meticulosamente amarrada para passar por cima do crime cometido pela agente, mesmo que com boas intenções. Tudo ligado à legislação em questão é feito para impedir que qualquer indivíduo que revele algo saia ileso: ele protege o governo de praticamente todas as maneiras e coloca aqueles que expõem informações praticamente em uma armadilha e fadados ao fracasso no tribunal – a despeito das atitudes ilegais tomadas. O clima que fica durante boa parte da trama é de desperança: a inteligência foi manipulada em vários aspectos para arrastar o Reino Unido para a guerra, que aconteceu mesmo com a exposição feita pela protagonista semanas antes.

Apesar de tratar de um tema denso, a produção consegue construir seu ritmo no mesmo estilo de um mistério, apesar de ser um enredo que poderia ser bastante cansativo: quase todas as sequências são carregadas de tensão, mesmo as mais banais, um feito muito bem executado pela direção de Gavin Hood (“Decisão de Risco”) e pelo roteiro do cineasta e de Gregory e Sara Bernstein. Porém, esses aspectos podem não funcionar tão efetivamente caso o espectador já conheça os detalhes do caso. Um momento inconsistente da narrativa é quando, no segundo ato, os jornalistas somem de cena para dar espaço para outras subtramas, voltando a ter certo destaque apenas no final. Mesmo fazendo sentido narrativamente para novos e importantes personagens, tal transição poderia ser feita de forma mais sutil, sem deixar o núcleo jornalístico fora de tela por tanto tempo, já que eles têm um destaque tão importante no início.

Além disso, é utilizado grande número de notícias de TV sobre o que estava acontecendo nos EUA para contextualizar a época, artifício aqui muito bem inserido. Ademais, vemos o dilema de Katherine no seu local de trabalho: apesar de considerar as ordens que recebem antiéticas, a maioria de seus colegas trata aquilo apenas como apenas mais uma tarefa, um conselho que seu esposo igualmente lhe dá no instante que ela lhe conta sobre o conteúdo do e-mail. Todavia, eles não são retratados como pessoas ruins ou que se importam menos com a segurança do povo, mas sim como trabalhadores que precisam usar essa abordagem para não tomarem certas dores para si de forma tão real, como aconteceu com Katherine.

Ainda que inserido numa fórmula já bastante conhecida por filmes que abordam fatos reais e dependem de muitos diálogos e exposição para serem totalmente compreendidos, Segredos Oficiais retrata uma parte decisiva da vida de uma verdadeira patriota. Ela seguiu seu instinto até quando sabia que sua vida seria colocada de cabeça para baixo. Hoje sendo uma história pouco conhecida mundialmente, vale a pena conferir a obra para acompanhar a trajetória dessa mulher.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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