Baseada no clássico instântaneo de Alan Moore e Dave Gibbons, a série reinventa e expande o universo estabelecido nos quadrinhos para abordar o racismo e o poder das máscaras, em uma das melhores produções televisivas dos últimos tempos.
Lançada em 1986, não demorou muito para que a graphic novel “Watchmen” se tornasse um marco das histórias de super-heróis. Publicado ao final da Guerra Fria, o quadrinho impressionou a muitos ao traduzir magistralmente o clima de incerteza e tensão da época, construindo uma narrativa inesquecível por meio de uma realista subversão dos mascarados. Explorando o medo perante as devastadoras consequências que os choques entre americanos e soviéticos poderiam trazer, a obra soube trabalhar como poucas as imperfeições das figuras que endeusamos em momentos de desespero, sendo até hoje uma das mais influentes no gênero. Dessa forma, inúmeros fãs imaginaram que seria impossível continuar a obra-prima de Alan Moore e Dave Gibbons, pensamento que a adaptação homônima da HBO mostrou estar completamente errado.
O ano é 2019. Décadas após o desfecho da HQ, a função dos vigilantes permanece clandestina e os poucos que ainda se atrevem a fazê-la não são os únicos portando máscaras. De um lado, os policiais de Tulsa – cidade do estado de Oklahoma que foi palco de um terrível massacre racial em 1921 – escondem os rostos para proteger suas identidades. Do outro, supremacistas brancos da seita Sétima Kavalaria “vestem” a face de Rorschach, inspirando-se no anti-herói para executar um tenebroso plano após meses em sigilo. Em meio ao ressurgimento do perigoso grupo, a detetive Angela Abar (Regina King, vencedora do Oscar por “Se a Rua Beale Falasse“) deve investigar a misteriosa morte de um importante colega, atormentada pela dúvida dessa estar ligada aos violentos racistas ou ao seu próprio passado.
Criada por Damon Lindelof (“The Leftovers“), é fácil perceber que a série opta por uma interessante troca de zeitgeist (termo alemão referente ao espírito histórico que influencia a cultura de determinado período). Ao substituir o conflito entre capitalismo e socialismo pela ameaça de contemporâneos preconceitos – por vezes, capazes de reproduzir infames acontecimentos como o de 1921 -, a produção resgata com sucesso o teor “político” tão presente nas páginas do material fonte. Sendo assim, demonstra que o showrunner compreende plenamente o verdadeiro propósito do clássico de Moore e Gibbons, atualizando o testamento da dupla sobre a supressão de traumas por meio de fantasias ao adicionar temas raciais e personagens tão complexas quanto as do original.
A impressionante agente Abar é a primeira evidência desse último aspecto. Herdando camadas de uma trajetória familiar marcada por solidão e violência, ela encontra no alter ego de Sister Night a permissão necessária para perseguir a ameaçadora Kavalaria, usando seu elegante traje (produto de um ótimo trabalho de figurino) como forma de afirmar seu poder na luta contra o racismo. Encarnada por uma surpreendente Regina King, atriz cujo magnético olhar demonstra que a raiva e a determinação de Angela são meros disfarces para dores pessoais, ela é incapaz de perceber que a tinta com a qual esconde os olhos também ofusca sua visão, impedindo-a de observar em suas raízes soluções para a investigação. Ela passa a questionar esta atitude a medida em que interage com o misterioso Will Reeves (Louis Gossett Jr.). O mesmo primor em desenvolvimento se aplica ao emblemático Looking Glass, detetive interpretado por Tim Blake Nelson (“A Balada de Buster Scruggs”) em uma atuação carregada de sensibilidade. Especialista em interrogatórios, ele é obcecado por encontrar a verdade nas palavras dos demais, manipulando a si mesmo enquanto veste uma máscara que o impede de visualizar a dura realidade. Movido por um nebuloso evento do passado, ele reflete, como o nome sugere, aqueles ao seu redor, jamais tendo a coragem de se encarar no próprio espelho.
Indo além da construção de uma identidade, entretanto, os roteiristas (entre os quais figura o próprio Lindelof) também buscaram extraordinárias ligações (cuja maioria deve ser mantida em segredo) com o universo apresentado no papel, provando que o título vai muito além de um mero empréstimo. Afinal de contas, “Watchmen” não vive apenas de novos rostos e traz algumas figuras já muito conhecidas pelos fãs de longa data (além de uma porção de easter eggs). É o caso, por exemplo, da notória Laurie Blake, clássica vigilante “Espectral”, que aqui retorna com muito mais força. Na pele da excelente Jean Smart (“A Vida Em Si”), capaz de conferir a seriedade e a arrogância exigida, ela contrasta notavelmente com Abar, endurecida pelos tempos de vigilante e não mais dependente do refúgio nas roupas de super-heroína. Ao seu lado, temos ainda a presença ilustre do majestoso Adrian Veidt, personagem fundamental para a finalização dos quadrinhos que também recebe uma impressionante evolução. Amargurado e desiludido, o poderoso “Ozymandias” encontra em Jeremy Irons (“Operação Red Sparrow”) o retrato perfeito de seu envelhecimento, protagonista de um arco que é engrandecido por essa grande performance e pelo bizarro universo lúdico no qual se encontra.
Quanto à direção, esta também não deixa a desejar, realizada por uma ótima equipe de cineastas. Unidos na construção de um excelente ritmo narrativo, os diretores conseguiram não só distribuir perfeitamente as mirabolantes revelações presentes na trama, como também garantiram uma temporada cuja qualidade se aprimora a cada episódio (incluindo a satisfatória conclusão). Em meio à gabaritada equipe, nomes como Stephen Williams (“Lost“) e Nicole Kassel (“Castle Rock”) foram responsáveis por espetáculos televisivos, momentos entre os quais podemos destacar, por exemplo, um hipnotizante mosaico (em preto e branco) composto por memórias de diferentes indivíduos, ou a belíssima adaptação de um dos segmentos mais marcantes da graphic novel. Não suficiente, a produção ainda é embalada por uma ótima trilha sonora, carregada de ares cyberpunk, e por satisfatórios efeitos especiais (alguns dedicados a gratificantes recriações de ilustrações originais).
Brilhantemente produzida em todos os aspectos, “Watchmen” é uma verdadeira ode à obra-prima criada por Alan Moore e Dave Gibbons. Capaz de ir muito além das homenagens, a série de Lindelof encontra na adoção de uma roupagem mais atual o seu grande mérito, assumindo uma originalidade ao tratar do racismo que poucos alcançaram. Não bastassem suas conquistas dentro da tela, o seriado mostra ser ainda mais relevante se considerado o ódio com o qual foi recebido por alguma parcela dos “fãs”, destinado a ser um imortal alerta acerca da manutenção de intolerâncias nos dias atuais. Mesmo que seja obrigatório reconhecer que muitos possuem boas intenções, não são poucos os “nerds” que relutam diariamente em aceitar o diferente, sendo cada vez mais difícil, em meio às máscaras da internet, separar os que carregam opiniões bem fundamentadas daqueles que se encaixariam muito bem entre os membros da Sétima Kavalaria.