A comédia dramática ambientada no dia da posse de Lula escancara, com humor e histeria, as contradições da classe média brasileira.
Passado em 1º de janeiro de 2003, dia da posse do primeiro mandato de Lula, “Domingo” é uma comédia dramática sobre o microcosmos de uma família burguesa do Rio Grande do Sul que retrata, como metáfora, a mentalidade e os medos de uma parcela da população brasileira diante daquele momento de transição. A história acompanha o dia de uma família gaúcha em férias no seu velho e decadente casarão, com as típicas brigas familiares, confusão entre os filhos e tensão entre os casais. Quando a matriarca, dona Laura (Ítala Landi), chega com o filho mais novo (Ismail Caneppele) para o almoço de sábado, os dramas pessoais e familiares se escancaram, tomando tons histéricos e manifestando as relações de dependência e poder entre ela e seus filhos, as brigas e traições entre os casais, bem como os abusos entre os patrões e as empregadas da casa, tudo isso sob o pano de fundo de um importante momento político do país.
Escrito por Lucas Paraizo (da série “Sob Pressão”), essa fábula brasileira é impiedosa ao retratar a decadência de um estilo de vida e mentalidade que no Brasil foram historicamente calcados sob a égide da dominação e do preconceito. Não à toa o grande medo da família é de que, com Lula, os “sem terra” tomem a propriedade da família como terra improdutiva. Num roteiro recheado de sutilezas e personagens cheios de contradições, curioso é notar que não somente os patrões se indignam com a posse do ex-operário, mas mesmo o velho caseiro da propriedade (Clemente Viscaino) esconjura a posse “daquela comunista”, revelando uma mentalidade de Casa Grande que se introjeta até mesmo naqueles que são abusados por ela.
Dirigido a quatro mãos por Clara Linhart (“Rio em Chamas”) e Fellipe Barbosa, o filme também indica uma assinatura na carreira deste último diretor que, junto com “Casa Grande” (2014), tem diagnosticado e lançado luz na forma de cinema sobre um traço antiquado e decadente na mentalidade das elites brasileiras: algo que a cientista política Marilena Chauí chama de “abominação” de nossas elites, e o sociólogo Jessé de Souza Martins chama de “elite do atraso” que, ao invés de liderarem a vanguarda nacional rumo às demandas das sociedades do futuro, se apegam às ruínas do patrimônio passado, conquistado, muitas vezes, por meio da escravidão ou da espoliação de recursos naturais comunitários.
Se em “Casa Grande” Fellipe dedica-se em revelar as contradições da burguesia urbana e carioca, com “Domingo” essa classe social adquire contornos marcados pelo regionalismo gaúcho, aproximando o filme ao estilo dos pampas, como as produções uruguaias e aos filmes de Lucrécia Martel (“Zama”). Enquanto o filho mais velho da família, o típico pai autoritário Eduardo (Michael Wahrmann), administra um frigorífico que não anda nada bem, sua filha planeja uma portentosa festa de quinze anos, e sua esposa (Camila Morgado) se diverte com o professor de tênis (Chay Suede). Resta a Eduardo, portanto, pedir auxílio à sua velha mãe, que ao final do filme aparece gastando o resto de seu capital (financeiro e social) na consagração da neta, aos moldes de uma família tradicional, em uma ostensiva festa de debutante.
A realidade, porém, é impiedosa, e como uma metáfora do fim de um ciclo para a velha mentalidade patrimonialista que não mais se sustenta, a luz da festa acaba, deixando os convidados no escuro, enquanto os créditos sobem. Com uma produção simples, mas caprichada em cada um dos seus elementos e ótimas atuações, tanto dos atores globais quanto dos novos nomes apresentados em tela, “Domingo” deveria ser um filme para passar na TV aberta, na sessão da tarde de um domingo, mas certamente causaria má digestão em parte da audiência.