Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 06 de fevereiro de 2020

Honey Boy (2019): masculinidades adoecidas

Alma Har'el e Shia LaBeouf se unem para conto semi autobiográfico do ator sobre seu problema com o álcool e o relacionamento abusivo com o pai, expondo suas feridas com sensibilidade ímpar.

Em julho de 2017, Shia LaBeouf foi detido quando, ao pedir um cigarro a um policial, começou a insultá-lo com ofensas racistas e ameaçá-lo após ter seu pedido negado. O surto do ator foi filmado, e esta não era a primeira vez em que ele aparecia visivelmente bêbado e causava algum tipo de tumulto em público. LaBeouf foi condenado a um ano de prisão, prestação de serviços comunitários e foi obrigado a se internar em uma clínica de reabilitação, onde foi, enfim, diagnosticado com transtorno de estresse pós-traumático e encontrou o caminho para a sobriedade.

Esta recapitulação da história do ator serve para entender melhor de onde vem toda a raiva, o ressentimento e a sensibilidade exposta em “Honey Boy”, novo filme da diretora Alma Har’el (do documentário “Bombay Beach”), que faz aqui sua estreia nos longas-metragens enquanto LaBeouf debuta como roteirista, além de interpretar uma versão fictícia de seu próprio pai. O roteiro foi escrito enquanto ele estava na reabilitação, tentando descobrir o que o levou a se tornar alcoólatra e as razões para o seu transtorno.

Aqui, LaBeouf se projeta em Otis (Lucas Hedges), um jovem ator que começou a carreira ainda criança e que, por conta de seus problemas com a bebida e explosões de comportamento, vai parar em uma clínica de reabilitação. Lá, ele se vê obrigado a retomar seu passado, especialmente na época em que morou com seu pai James (LaBeouf), para entender de onde vem seu vício. James é um ex-palhaço de rodeio condenado por violência sexual, machista, homem estilo grosseirão que cobra demais do Otis de 12 anos (interpretado por Noah Jupe nesta fase da vida do personagem). 

O menino leva seu trabalho de ator a sério, mas também quer se divertir como um garoto normal e deseja não só o respeito de seu pai, mas principalmente seu carinho. Ironicamente, a única atitude próxima da doçura da qual James se aproxima é de apelidar Otis de “honey boy”, enquanto exige que o menino “aja como homem”. James se sente impotente por ver seu filho lhe sustentando, como se tivesse sido castrado. Otis, por outro lado, quer conquistar o afeto de seu pai com o trabalho, como se deixá-lo orgulhoso o tempo inteiro também fosse um emprego em tempo integral.

O que significa ser homem? Que padrões doentios foram criados para estabelecer que o sinônimo de masculino deve ser a força, a guerra, a conquista a qualquer custo e demonstrações embaraçosas de que está no poder. E James faz questão de seguir a cartilha sempre que pode: ensinando o filho de 12 anos a fumar, tentando peitar outros homens, se insinuando sexualmente para a vizinha (interpretada pela cantora FKA Twigs, que também faz aqui sua estreia no cinema) ou para as mulheres que trabalham nas produções em que seu filho está atuando, gritando com a mãe de Otis ao telefone. E como dói para Otis perceber que a coisa mais fácil a se fazer é repetir este padrão na vida adulta sem pestanejar.

É cruel a dor de quem já se viu sentado na cadeira de um analista tentando escavar memórias que gostaria de deixar enterradas. Mas Har’el e LaBeouf acertam justamente em não tratar o processo de análise de Otis como uma punição por ter se tornado, em partes, seu pai, mas em mostrar como este é um medo comum, porém reversível a partir do momento em que se identificam os atos de masculinidade adoecida que o cercaram durante a infância e a adolescência. 

E como são bonitos os momentos de doçura entre Otis e a vizinha tímida, que evoca seu lado mais lúdico e lhe dá o carinho que queria receber em momentos nos quais o filme se assemelha a um sonho confortável no qual o menino gostaria de viver. Twigs poderia ser só mais uma “menina dos sonhos” do jovem ou a vizinha sensual de qualquer filme preguiçoso, mas mesmo sem ter um nome (nos créditos ela aparece somente como Garota Tímida), ela cumpre seu papel de manter Otis em um porto seguro longe das cobranças e surtos do pai, mesmo que por pouco tempo. Muitas vezes o relacionamento entre os dois parece que vai descambar para um romance bizarro, mas Har’el subverte as expectativas entregando uma personagem tão gentil que nem parece real.

Falando sobre a diretora estreante, Har’el com certeza não foge do documental em “Honey Boy”, e não só por estar adaptando parte da vida de seu roteirista, mas pela forma como sua câmera acompanha os momentos de backstage enquanto Otis trabalha, mantendo os olhos no menino ator e no pai vigiando por trás das câmeras. Mas ela encontra o equilíbrio nos momentos de “filme dentro de um filme”, quando Otis está atuando a confusão mental pela qual está passando e pequenos momentos de surrealismo da narrativa.

O que pode parecer num primeiro momento um projeto vaidoso de Shia LaBeouf toma vida e transcende a experiência individual do ator e roteirista. E em um ano no qual as masculinidades vêm sendo discutidas pela comédia ou até mesmo pelo terror, “Honey Boy” se destaca por ser um drama sincero, ainda que caminhe pelo campo dos sonhos e do inconsciente, que sabe trabalhar a dor, o perdão, a memória e o homem tentando se desintoxicar dos símbolos do masculino impostos a ele desde a infância.

Jacqueline Elise

Compartilhe