Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Ford vs Ferrari (2019): a emoção da conquista

Boa química entre os protagonistas e edição de som primorosa fazem com que as mais de duas horas do longa biográfico sobre briga de montadoras passem em velocidade máxima.

Biografias de momentos marcantes do esporte tendem a cair em um melodrama desnecessário, quase transformando certos acontecimentos em novelões enfadonhos. Fica mais improvável ainda que o saldo seja positivo quando um diretor decide transformar uma rixa automobilística dos anos 1960, da qual somente aficionados das corridas ouviram falar, em um filme de duas horas e meia. Mas James Mangold (“Logan”) conseguiu cruzar esta linha de chegada com “Ford vs Ferrari“.

A produção chega com elenco de peso para uma missão complicada: retratar a briga entre a montadora americana e a italiana que culminou na corrida das vinte e quatro horas de Le Mans de 1966, na França. A rivalidade surgiu quando Enzo Ferrari recusou a compra da marca pela Ford Motor Company no momento em que viu que a compra incluía, também, o programa automobilístico da Ferrari. Com a negociação frustrada, Henry Ford II escalou o designer automotivo e ex-piloto Carroll Shelby (Matt Damon) para desenhar um carro que pudesse se comparar à potência da escuderia europeia. Shelby, por sua vez, escolheu o desbocado motorista profissional britânico Ken Miles (Christian Bale) para ser seu piloto na empreitada, desafiando as leis da física e da montagem de carros à época, e, assim, criar o modelo Ford GT40 a fim de competir na Le Mans ’66 (que, por sinal, dá nome ao filme em alguns países como o Reino Unido).

O que torna a história do embate entre a Ford e a Ferrari interessante não é, exatamente, seus detalhes técnicos. É, na realidade, a emoção que a prova decisiva na França trouxe aos fãs do automobilismo e todos os problemas que Shelby e Miles enfrentaram para construir o GT40 (desde liberdades criativas que contestavam as ideias iniciais de seus patrões até personalidades geniosas que não se batiam). Se for para fazer uma obra sobre corrida de carros, é preciso entender que boa parte da audiência não necessariamente se importa com essa trama, mas sim com o que há de humano nela.

Por isso, de nada adianta ter um elenco de peso sem que seus protagonistas tenham química entre si. Uma das grandes vantagens que a narrativa possui é como a interação entre Damon e Bale na tela é construída em etapas: destaca o pavio curto de Miles e o pensamento prático de Shelby se esbarrando em diversas ocasiões, contudo com a amizade prevalecendo ao fim. O que se vê é um retrato de amizade e respeito mútuo, não uma caricatura de duas figuras realmente existentes na categoria.

É por conta dessa construção que o longa sai vitorioso: Mangold e os roteiristas Jason Keller e Jez e John-Henry Butterworth entenderam que o fato não vai prender sua audiência em um filme relativamente longo – uma elevada duração de duas horas e trinta e dois minutos muito bem utilizada –. São as personalidades envolvidas em um momento que entrou para a história das corridas que cumpre esse papel. E haja ego grande para caber nessa trama sem tornar tudo um grande dramalhão.

Outro trunfo é a edição de som, passível de ser lembrada em futuras premiações pelo trabalho técnico. Considerando que o clímax é a disputa de Le Mans, o filme se torna verdadeiramente prazeroso ao dividir o peso da tensão daquele instante entre as ótimas performances dos dois atores e os efeitos sonoros. A sensação é quase como se estivesse colado ao Ford GT40, correndo na chuva e no escuro.

Infelizmente, é possível notar que a obra foi feita somente para a temporada de prêmios: uma cinebiografia com atores queridos em Hollywood e Christian Bale trazendo uma performance hipnotizante, ainda que sem as transformações corporais pelas quais costuma passar. Mas não só de estatuetas vive uma produção, o que levou James Mangold a entregar um projeto sólido de entretenimento e um enredo que poucos ousariam contar no cinema (ou que contariam de forma tediosa e enlatada). Aqui ele foi reproduzido de forma a fazer com que os espectadores não se importem, necessariamente, com o desfecho para as escuderias e priorizem as relações interpessoais dos personagens. “Ford vs Ferrari”, no fim, é muito mais humano do que mecânico: a emoção passa pelo velocímetro e conquista pelo carisma de seus protagonistas.

Jacqueline Elise

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