Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de novembro de 2019

Dois Papas (Netflix, 2019): o exercício da tolerância [TIFF 2019]

Fernando Meirelles entrega um longa surpreendentemente divertido e íntimo sobre a relação marcada por diferenças entre os papas Bento XVI e Francisco durante crise moral na Igreja Católica.

Há lugares e situações em que muitos de nós gostaríamos de ser uma mosquinha só para entrar sorrateiramente ali e testemunhar tudo que acontece. O ser humano é curioso por natureza, afinal de contas. Mas o que alguns dariam para observar a votação para escolher o novo papa da Igreja Católica, ainda mais quando a instituição encontrava-se em conflito de gerações, ideais e futuramente saberíamos que também estava nadando em escândalos? O diretor brasileiro Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”) materializou esta dúvida em Dois Papas, longa que lançará pela Netflix. E assim como o conclave, Meirelles quis retratar um período polêmico da Igreja como se estivesse revelando um segredo.

Com a morte do papa João Paulo II, em 2005, era necessário decidir quem seria seu sucessor. Entretanto, o catolicismo estava dividido: de um lado, cardeais queriam que a Igreja Católica acompanhasse a evolução natural da sociedade e apoiavam a eleição de um papa mais progressista; de outro, havia quem achava que a solução era não deixar a Igreja ser corrompida por novos ideais e que só assim seria possível haver ordem e paz. Representando os progressistas, havia o argentino Jorge Mario Bergoglio (Jonathan Pryce). Na ala conservadora, o alemão Joseph Ratzinger (Anthony Hopkins) era seu representante.

Conforme a história se confirmou, Ratzinger foi o escolhido e logo assumiu o manto como o papa Bento XVI. Após sua derrota, Bergoglio estava decidido a solicitar sua aposentadoria, mas precisava de autorização do atual pontífice, que não era muito afetuoso de sua pessoa e sua visão de mundo. É a partir daí que o longa constrói sua narrativa, mostrando como dois representantes de lados opostos da Igreja passaram a conversar – antes por obrigações formais, depois por vontade própria. A dramatização, como mostra a história real, culmina na renúncia de Bento XVI e na seleção de Bergoglio como o novo papa, mas traz ao público o que não se viu por trás das paredes do Vaticano.

A câmera de Meirelles poucas vezes se preocupa em centralizar seus protagonistas, inserindo o espectador em um contexto no qual ele é sempre lembrado de que está ouvindo conversas que supostamente não deveriam vir à público. Esta é uma das belezas de “Dois Papas”: é possível ver a relação entre dois desafetos se construindo sutilmente e, ainda assim, repleta de atritos por conta de suas divergências. É quase um prazer voyeurístico: não há nada mais íntimo do que observar a aproximação de duas pessoas e o surgimento de uma cumplicidade entre elas.

O que também ajuda na imersão são as atuações de Hopkins e Pryce. A genialidade de Hopkins já não é mais surpresa para o público, e o ator faz uma caracterização muito fiel a Bento XVI. Mas quem rouba a cena é Pryce: não bastasse uma semelhança quase natural do ator com o papa Francisco, ele também traz uma amigabilidade deliciosa ao papel do pontífice argentino, mostrando o carisma pelo qual ele ficou conhecido.

Meirelles também não poupa suas críticas sutis à Igreja enquanto instituição, mas prefere apostar em recursos imagéticos para passar sua mensagem em vez de usar o discurso do roteiro. A montagem de “Dois Papas” brilha não só ao encaixar perfeitamente imagens de arquivo de jornais televisivos, mas também com o uso da música. Inusitadamente, o longa se torna até divertido em meio ao tema sério. Rir é, definitivamente, o melhor remédio em meio ao desfalecimento dos ideais conservadores do catolicismo.

Uma pena que a desgraça quase tenha sido insuficiente para explicar a história que se propôs a contar, como se Meirelles estivesse “pisando em ovos” ao mostrar que, enquanto Bento XVI já planejava sua renúncia, a Igreja Católica se afundava em escândalos, especialmente de abuso sexual de menores no Vaticano. À época de sua saída, em 2013, Ratzinger alegou que estava muito cansado, por conta de sua idade, para as exigências que vinham com seu cargo. Ele foi o primeiro pontífice a renunciar em quase 600 anos. Na dramatização, porém, a conclusão chega a ser anticlimática, e não por se saber como a história se desenrolou, mas justamente pela leve sugestão de houve algo a mais, mas que ninguém estaria autorizado a contar.

Mesmo assim, Meirelles, Hopkins e Pryce conseguem recontar a história de forma surpreendentemente divertida, apostando na curiosidade do espectador de como funciona o exercício da tolerância, independentemente de sua religião ou crença pessoal: com muita escuta, alguns momentos de explosão, mas a vontade de aprender com o outro uma forma diferente de ver o mundo.

Jacqueline Elise

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