Mesmo com certa dificuldade em arrancar risadas, "Maria do Caritó" apresenta uma poética narrativa sobre autodescoberta e uma encantadora homenagem à cultura nordestina.
Não há como ignorar que o cinema nacional tem vivenciado uma verdadeira transformação. Resgatando as já consolidadas críticas sociais, recurso que rendeu verdadeiros clássicos durante o Cinema Novo, os cineastas do Brasil têm se aventurado cada vez mais por gêneros pouco explorados. Enquanto muitos encontram no terror e no suspense, por exemplo, maneiras alternativas de dispersar poderosas mensagens, ainda existem aqueles que preferem usar técnicas muito conhecidas no mercado brasileiro. Tais casos, contudo, não necessariamente determinam filmes ruins, acontecimento perfeitamente exemplificado pelo longa “Maria do Caritó“. Dirigida por João Paulo Jabur (“Novo Mundo“), a obra usa o humor na construção de uma deliciosa homenagem ao mundo circense e à cultura do país de modo geral, conquistando através de sua simpática brasilidade.
Baseado na peça homônima do autor Newton Moreno (que aqui retorna como roteirista ao lado de José Carvalho), o filme conta a história da santa Maria (interpretada pela excelente Lilia Cabral, grande estrela da televisão brasileira), uma virgem que sonha em encontrar seu grande amor. Cansada de sua função como figura religiosa, ela resolve consultar uma vidente na feira local, decepcionando-se ao receber a notícia de que o amado viria de fora. Quando um misterioso grupo de circo chega a sua pequenina cidade, Caritó resolve se unir à divertida trupe, mergulhando em uma série de confusões para conquistar o seu pretendente. Bastante simples, é na inocência do roteiro e, principalmente, no bom uso de diferentes marcas do imaginário popular que a produção alcança seu charme, descobrindo na adorável protagonista a ponte perfeita para transmitir esses aspectos.
Usando a comédia como fio condutor e escolhendo uma notável homenagem cultural ao Nordeste como pano de fundo, Moreno e Carvalho investem na construção de uma divertida jornada sobre desejos e propósito humano. Mesmo sem apresentar nada de novo, a dupla trabalha a personagem central de forma bastante inteligente, capaz de realizar relevantes apontamentos no meio do processo. Ao desenvolver uma figura que transita entre a religião e a arte, eles conseguem discutir, por exemplo, sobre a importância da coexistência dessas bases, inseridas em uma época de constante choque entre elas e elegendo-as como igualmente importantes na formação de um povo. Não suficiente, ainda acrescentam ao discurso uma clara crítica à utilização da fé como instrumento político, por vezes usada por influentes personalidades políticas (tais como o caricato coronel de Leopoldo Pacheco) para a dominação sobre vulneráveis populações. Finalmente, sobra espaço ainda para a força feminina, e, como já apontado, para um comovente tributo às raízes nordestinas.
Seria injusto, entretanto, creditar esses últimos aspectos exclusivamente aos roteiristas, tendo também sua força em outros dois agentes cruciais para a narrativa. Quanto ao primeiro, é impossível não mencionar o cativante desempenho de Lilia Cabral, excelente atriz cujo trabalho vai muito além do que é visto na tela. Brilhante ao encarnar a carismática protagonista, carregada de fofura ao mesmo tempo em que transmite a insatisfação e o desgaste de Caritó com um penetrante olhar, ela teve um grande envolvimento com a adaptação de Maria dos palcos para o cinema. Como idealizadora do projeto, esteve diretamente ligada à criação do arco dramático de sua personagem, construindo-a de forma poderosa que, inicialmente movida por uma paixão passageira, descobre no “fogaréu embaixo da saia” uma maneira de alcançar o seu verdadeiro destino.
Em relação ao segundo, por sua vez, esse apresenta os seus alicerces no papel de Jabur, diretor, mesmo um tanto operante, que faz dos recursos técnicos uma sincera ode ao interior do país. Por usar vivas cores azuis, bandeirinhas típicas e a charmosa arquitetura da tradicional Piacatuba, estabelece uma marcante identidade visual, qualidade que se torna ainda melhor quando acrescida da ótima trilha sonora. Por outro lado, ele demonstra muita dificuldade em equilibrar os diferentes tons do longa, jamais alcançando um bom equilíbrio entre eles. Dividido entre o humor e a realização de comentários sociais, o cineasta prioriza de forma exagerada essa última característica, por vezes gerando sequências bastante maçantes. Embora válidas e extremamente necessárias, tais observações acabam ofuscando a dimensão cômica, este infelizmente resumido a piadas de caráter físico e, em alguns momentos, relacionadas ao velho esteriótipo dos obstáculos do brasileiro em dominar línguas estrangeiras ou à sua relação com músicas da cultura pop. Em um filme que se propõe, em primeiro lugar, a ser uma comédia, temos aí a sua principal falha, erro que o leva a ser um tanto esquecível.
Por fim, resta falar ainda dos agradáveis coadjuvantes, que mesmo carregados de caricaturas desempenham bem sua função. Fundamentais para o andamento da trama, protagonizam os momentos mais engraçados, corrigindo, em parte, o problema citado anteriormente com muita simpatia. Entre eles, porém, merece destaque a surpreendente personagem de Juliana Carneiro da Cunha, que vai além das convenções ao apresentar uma crível conexão com a protagonista.
Bem intencionado, “Maria do Caritó” nunca é tão cômico quanto poderia ser. Simpático, entretanto, o filme compensa as piadas pouco inspiradas com um encantador elenco e uma ótima exploração das raízes nacionais, mostrando que na aparente simplicidade do roteiro existe muito a ser dito. Surgido da incessante persistência de uma das melhores atrizes brasileiras da atualidade, é um envolvente retrato sobre um Brasil colorido, poético e acolhedor, um país que mesmo em tempos sombrios ainda possui espaço para uma boa história sobre aceitação e empoderamento feminino.