Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 14 de outubro de 2019

As Golpistas (2019): conto honesto sobre vulnerabilidade [TIFF 2019]

Jennifer Lopez brilha em longa sobre strippers trapaceiras, mas a diretora Lorene Scafaria leva o mérito ao conceber uma história que não reduz o trabalho sexual e a relação entre mulheres a caricaturas ultrapassadas.

2019 tem sido um ano crucial para o cinema feito por mulheres e a importância de tê-las contando histórias sob seu ponto de vista. E se havia um filme que precisava ser feito por mulheres, este filme era “As Golpistas”, escrito e dirigido por Lorene Scafaria (“A Intrometida”). Um filme sobre strippers que ficaram conhecidas por aplicarem golpes milionários em seus clientes ricos, essa história foi contada pela primeira vez em um ótimo artigo da New York Magazine –, mas, em particular, ela envolve algo maior do que só um conto absurdo. Era preciso, antes de tudo, se colocar no lugar das trabalhadoras sexuais. E mais: uma história sobre golpistas que começaram a fazer o que fizeram por desespero e continuaram nisso por se embriagarem com o poder que o dinheiro traz.

O filme segue uma ordem cronológica, começando em 2007. A narradora é Destiny (Constance Wu), uma stripper novata que precisa sustentar sua avó. Ela encontra na boate uma forma de ganhar dinheiro rápido, mas luta para conseguir espaço entre outras dançarinas. Não que Destiny seja maltratada pelas strippers por uma estúpida e ultrapassada competição feminina – ela está no verdadeiro mundo cão: trabalhadoras do sexo recebem pouco e precisam compartilhar o que ganham com mercenários como o dono da boate e o segurança, como todo trabalho mal regulamentado. Sobrevive quem se adapta melhor. Na sua primeira noite, porém, ela vê Ramona (Jennifer Lopez), a abelha rainha do recinto, se apresentando e sendo recebida com uma chuva de dinheiro. Ela se aproxima de Ramona como uma admiradora, mas não contava que fosse abraçada por ela como uma filha.

Ramona, então, ensina Destiny a ser uma boa stripper. Ela aprende a dançar no pole, a fazer uma lap dance de respeito e, com isso, a boate se torna um antro de alegria até mesmo para as dançarinas – destaque para as participações curtas, mas divertidíssimas, das rappers Cardi B e Lizzo. Entretanto, a crise de 2008 chega e não poupa ninguém, a ponto de Destiny e outras dançarinas se verem aceitando propostas para se prostituírem. É aí que Ramona junta Destiny e as strippers Mercedes (Keke Palmer) e Annabelle (Lili Reinhart) para um complexo esquema para ganhar mais dinheiro sem precisar prestar “outros favores” aos clientes de Wall Street que atendiam: drogá-los e usar o cartão de crédito deles o máximo possível.

A história, contada como se Destiny estivesse prestando seu depoimento à jornalista que escreveu o artigo sobre o caso, é trabalhada com cuidado para não justificar a atitude delas, mas também não é insensível à situação de vulnerabilidade na qual as personagens se encontravam. É preciso doses cavalares de empatia e de entendimento do universo do trabalho sexual nos Estados Unidos para conseguir contar uma história dessas não só de forma fiel, mas sem estereotipar ou reduzir suas personagens a caricaturas. A diretora, inclusive, afirma que conversou com muitas strippers antes de conceber o filme.

E percebe-se isso: Ramona, Destiny, Mercedes e Annabelle são complexas até quando são tomadas pela ganância e iludidas com o sucesso de seu esquema. Destiny ainda é insegura mesmo quando está confiante. Ramona, brilhantemente interpretada por Lopez, é a “mamãe urso”: ela só quer que suas “crias” prosperem a qualquer custo. Annabelle é o alívio cômico e provavelmente a personagem mais fácil de se “ver” na tela. Não seria preciso muito para vomitar de nervoso fazendo o que elas faziam. Ademais, Mercedes é extremamente confiante, mas toma decisões amorosas de cunho duvidoso como praticamente todo mundo já fez alguma vez na vida.

Outro recurso narrativo interessante em “As Golpistas” é a forma com que o filme conta sua história com o figurino e a maquiagem, captando exatamente a essência do que era o “guarda-roupa ostentação” entre 2007 e 2008: bolsas enormes com monogramas estampados pela peça toda (Ramona, em determinado ponto, chega a dizer que “não tem como uma bolsa ser grande demais”), calças de cintura baixíssima, casacos de pele de chinchila, piercings no rosto e no umbigo, roupas de moletom e de veludo das (agora falidas) grifes Bebe e Juicy Couture, boca com delineado escuro em volta, vestidos de bandage da grife Hervé Léger que deixavam pouco para a imaginação e marcavam as curvas sem dó. Pensando que a maior referência de status da época era Paris Hilton, as personagens sonham em se adaptarem à moda da época e ser – e ostentar – como a herdeira. Coisas que hoje consideramos cafonas eram o maior exemplo de sucesso na época.

“As Golpistas” mostra que todo cuidado é pouco, ainda mais quando se faz um filme sobre uma situação complexa e de extrema vulnerabilidade. É preciso se permitir sentir isso antes de tentar passar a sensação para o papel e para as câmeras. E não é necessário fazer um laboratório ou ser “ator de método” para entrar no clima das personagens, basta se colocar no lugar do outro e ouvi-lo, seja para fazer comédia ou drama. Histórias como essa merecem ser contadas, não só pelo alerta, mas também para mostrar dinâmicas de relacionamentos diferentes entre mulheres. Muito se engana quem pensa que este é só mais um “chick flick”.

*Filme visto no 44º Festival Internacional de Cinema de Toronto.

Jacqueline Elise

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