Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 07 de outubro de 2019

O Espião (Netflix, 2019): à serviço da nação [MINISSÉRIE]

Famoso por seus papéis excêntricos, Sacha Baron Cohen brilha ao mostrar seu lado dramático nessa tensa e bem costurada produção da Netflix.

Sacha Baron Cohen percorreu o gueto como o rapper Ali G, cruzou a América atrás de Pamela Anderson como o repórter Borat, invadiu desfiles de moda como o estilista Bruno e através de métodos mais do que questionáveis comandou um pequeno país como o controverso Ditador Aladeen. Após tantos personagens memoráveis no currículo, o tipo de comédia pela qual Cohen ganhou fama e uma penca de desafetos começou a dar sinais de desgaste, o que de certa forma veio em uma boa hora para que ele pudesse exercitar uma outra faceta que o público ainda não tinha conhecimento e que com certeza vai surpreender até o espectador mais cético. Em “O Espião”, minissérie produzida pelo próprio ator para a Netflix, Sacha Baron Cohen coloca à prova sua veia dramática e passa com méritos pelo papel mais difícil da carreira dentro de uma narrativa tensa, melancólica, bem fotografada e com uma história notável sobre o caos de uma guerra sem fim.

Baseado em uma história real, a produção reconta os passos da trajetória de Eli Cohen, o homem que foi de funcionário público à um dos mais extraordinários espiões da história. Enviado para a Síria após ter sido recrutado por uma agência de Israel, ele se infiltrou na fechada elite político-militar de Damasco, onde foi conselheiro do Ministério da Defesa e do Presidente, além de também ter sido cogitado como Ministro da Defesa, cargo que, no entanto, não chegou a assumir. Conhecido como o “príncipe” dos espiões, forneceu a Israel informações valiosíssimas para que o país pudesse sair vencedor na famosa Guerra dos Seis Dias. Ao trazer para a ficção um recorte histórico memorável, esta minissérie criada pelo israelense Gideon Raff (responsável pelo filme “Missão no Mar Vermelho” e a série de sucesso “Homeland”), opta por não brincar com a expectativa do público acerca do destino do protagonista, revelando já em seus primeiros minutos a sorte dele.

Em tempos onde basta “dar um Google” para conhecer o mundo e as histórias que o formaram, a decisão de começar a narrativa pelo fim mostra-se uma jogada certeira do criador e seu staff. Apresentando de cara a indícios da tragédia que está por vir – os dedos sem unha que assinam uma carta perfuram a tela com dor -, Raff propõe ao espectador uma relação mais estreita junto ao seu personagem principal, e dessa forma estabelece uma bem sucedida atmosfera de suspense que termina por permear, além desse, os outro cinco episódios subsequentes. Feita essa forte introdução, chega então o momento de Sacha Baron Cohen pôr de lado a comicidade e ditar os rumos da narrativa com uma atuação magnética repleta de carisma e alternativas disponibilizadas pelo roteiro denso e engenhoso escrito por Raff e Max Perry. Como a mariposa que surge propositalmente, pratica a metamorfose do introvertido Eli Cohen para o popular Kamel Amin Thabet com glórias.

Parte de uma linhagem de comediantes do calibre de Jim Carrey, Ben Stiller, Adam Sandler e Steve Carell, que ao transitarem de comédias pastelões para o drama exibem interpretações quase sempre certeiras e prodigiosas, Cohen conduz com admirável habilidade seu personagem cheio de nuances a um arco dramático melancólico e de traços lendários, onde até mesmo por meio de uma simples troca de vestimentas monocromáticas por trajes pomposos provenientes de seus disfarces é capaz de evocar uma infinidade de sentimentos, que vão do abatimento a convicção. E basta apenas um episódio para que o talento do ator que deu vida a figuras tão incomuns, expresse-se entre feições tristes de um semblante carregado e a fisicalidade de uma vontade palpável de se provar digno perante o país e a família, aqui representada pela esposa Nadia (a atriz Hadar Ratzon Rotem de “Homeland” entrega um desempenho magnífico, com múltiplos momentos de cortar o coração).

Além de trabalhar com interpretações cativantes em uma narrativa pautada pela tensão e ansiedade (qualquer sequência em que está infiltrado é um gerador de desconforto e preocupação com uma possível descoberta), o filme destaca-se ainda pelo apuro técnico de seus recursos como, por exemplo, o design de produção que reconstitui de maneira fidedigna ambientações de Israel e da Síria e as separa por fotografias distintas: a Israel de Eli é coberta por uma paleta pastosa, na qual as cores desbotadas confunde-se com desânimo de seus habitantes, contrapondo-se a Damasco de Kamel, que é cheia de cores vivas que refletem o estado de espírito nobre dele. Há espaço inclusive para uma gratificante rima visual em que a cor vermelha emerge, alertando para um lance crucial da narrativa.

Deixando para trás o glamour de outras obras do subgênero, “O Espião” é uma minissérie crua e envolvente, caprichada tecnicamente, levada por uma direção segura e um intérprete arrebatador.

Renato Caliman
@renato_caliman

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