Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A Música da Minha Vida (2019): fale sobre um sonho, tente torná-lo real

Inspirado e embalado pelas composições de Bruce Springsteen, o filme é uma jornada encantadora e emocionante sobre autodescobrimento, família e o ideal do sonho americano.

Arrepia, comove, faz pular e dançar, provoca reflexões, serve como instrumento de debate bem como pode funcionar como simples diversão escapista. Dita moda, muda a personalidade e na maioria dos casos é capaz de extrair o melhor de você ou revelar uma pessoa que nem imaginou que poderia ser. A música une, transforma vidas e nessa levada de prazer e alto astral chegou a vez de Bruce Springsteen receber uma devida homenagem por sua marcante contribuição musical. Impulsionado pela recente onda de filmes musicais iniciada pelos contemporâneos “Bohemian Rhapsody” e “Nasce uma Estrela”, que na sequência resultaram em “Rocketman” e “Yesterday”, entra em cena o simpático e contagiante “A Música da Minha Vida”, um filme fluido como The River, movido pelos ensinamentos Born to Run do cantor americano, com uma atuação central estimulante de um Hungry Heart e uma narrativa bem equilibrada, pautada pelo sonho americano de The Promise Land.

Conheça a história de Javed (Viveik Kalra), um garoto filho de paquistaneses que mora com sua família na pequena cidade de Luton, ao norte de Londres. Desde pequeno um grande entusiasta da escrita, cresceu compondo músicas para seu melhor amigo Matt (Dean-Charles Chapman) e também escrevendo poemas sobre as questões econômicas e raciais de um período de austeridade da Inglaterra de 1987. No entanto, jamais deixou de sonhar em viver outra vida na cidade grande longe dos rígidos costumes impostos pelo pai tradicional (Kulvinder Ghir). Só que o sonho pode virar realidade, quando Javed é apresentado às canções de Bruce Springsteen e passa a entender sobre a vida de acordo com as letras e melodias do ídolo. O longa é baseado na experiência real de Sarfraz Manzoor e seu aclamado livro de memórias “Greetings from Bury Park: Race, Religion and Rock N’ Roll“, no qual afirma, entre outras curiosidades, ter comparecido a mais de 150 concertos do lendário músico.

Diferente das adaptações musicais que recentemente ganharam a simpatia do público, agraciando nomes como Freddie Mercury, Elton John e Paul McCartney, aqui podemos notar uma abordagem mais limitada da discografia do ídolo, o que em nada impede o mergulho vertiginoso na trilha sonora que surge sempre pontual para acompanhar as descobertas do protagonista. Além disso, vale ressaltar que, se em outras narrativas a trilha sonora é usada como muleta para descrever sentimentos e ações, a sua importância no filme é traduzida num surgimento orgânico e que mesmo quando repetida funciona de maneira eficiente. Contudo, as músicas não provocariam o mesmo sentido sem o hábil roteiro pensado por Paul Mayeda Berges, Gurinder Chadha e Sarfraz Manzoor, o qual descreve com polidez e integridade o conturbado período pelo qual a Inglaterra comandada pela então Primeira-Ministra Margaret Thatcher passava, concebendo uma belíssima metáfora com o cotidiano do jovem Javed e de sua família.

Responsável também pela direção do filme, a queniana Gurinder Chadha (realizadora de diversos documentários da rede BBC e da produção “Driblando o Destino”) pratica aqui uma condução enérgica e emocional, especialmente nas sequências musicais, ao passo que durante as cenas em que precisa demonstrar os relacionamentos manifesta-se carinhosa e por vezes angustiante, captando com sua câmera ângulos mais fechados, por exemplo, quando exibe a família paquistanesa sempre reduzida em sua pequena – quase asfixiante – casa no subúrbio de Luton. Sustentam as ações da diretora a excelente atuação do estreante Viveik Kalra, que exterioriza o amadurecimento de seu personagem de maneira muito natural, jamais permitindo que o simples fato de dar novos rumos à vida, conforme as lições vindas de músicas, pareça algo forçado. E para elevar sua interpretação, Kalra conta com a companhia do veterano Kulvinder Ghir, cujo papel de pai autoritário resulta em embates essenciais para o desenrolar da personalidade deles.

Com um montagem desenvolta e ritmada assim como sua trilha sonora (o filme percorre um ano letivo de Javed de maneira muito coerente) e uma linguagem de fácil acesso (perceba como a inclusão das letras do “The Boss” em algumas cenas reforça esse didatismo), “A Música da Minha Vida” é um filme contagioso, que não perde o seu encanto nem mesmo quando se deixa levar pelas resoluções previsíveis do bom argumento. Em quase duas horas de sessão, que passam voando como um daqueles shows espetaculares de rock ‘n’ roll, a narrativa dançante e romântica cheia de fôlego joga o astral lá pra cima, fomenta discussões necessárias sobre preconceito e intolerância, e toca a alma de cada espectador, seja ele fã ou não de Bruce Springsteen. É sobre coragem, esperança, mudanças – de roupas e atitudes – e euforia. O lendário cantor de New Jersey, que ao longo dos anos soube como poucos cantar para todas as classes, tem aqui sua mensagem assimilada e transportada com muito honestidade e animação para as telonas.

Renato Caliman
@renato_caliman

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