Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 17 de setembro de 2019

Os Curados (2017): “zumbis” em sociedade

David Freyne assina uma história original sobre zumbis, deixando o terror em segundo plano e criando um inesperado drama sobre reintegração social.

Os zumbis povoaram a cultura pop com diferentes abordagens e significados ao longo das décadas. Essas criaturas já foram lentas, rápidas, símbolos do consumismo e da alienação das massas ou simples ameaças para histórias de terror. As possibilidades pareciam esgotadas ao ponto da simples repetição e reciclagem de fórmulas desgastadas até o lançamento de “Os Curados“, produção dirigida e roteirizada por David Freyne. Nela, há uma proposta original baseada na apropriação de uma infecção como metáfora para as relações entre Estado e sociedade e entre indivíduos.

A originalidade está no foco escolhido pela narrativa: ao invés de tratar dos efeitos mortíferos de uma contaminação que transforma a humanidade em uma horda de zumbis, o filme trabalha os eventos seguintes a esse acontecimento. Após a descoberta da cura, a praga é revertida em 75% dos infectados, que passam a ser reintegrados à sociedade. Porém, a sociedade discrimina os curados e se recusa a aceitá-los de volta. Enquanto Senan (Sam Keeley) e Conor (Tom Vaughan-Lawlor) passam por esse processo de reinserção, Abbie (Ellen Page) é o exemplo da pessoa imune que precisa se readaptar às mudanças sociais. A situação ocorre de maneira conflituosa, despertando tensões sociais e a incapacidade por parte do governo de lidar com os 25% da população resistente à cura.

Nos primeiros minutos da projeção, os tormentos vividos pelos curados são expostos diretamente, já que eles conseguem se lembrar de tudo que fizeram enquanto estavam contaminados. A consciência de que agiram como assassinos sanguinários se alimentando de carne humana os faz carregar um sentimento de mal estar e sofrimento constante. A partir do ponto de vista de Senan, o espectador acompanha o reavivamento das memórias dolorosas na forma de flashbacks surgidos em pesadelos ou lembranças repentinas. Por um viés dramático, esses momentos funcionam como caracterização para os zumbis (indivíduos de respiração acelerada, veias saltadas e tom de pele arroxeada) e para o choque contrastante criado pela decomposição física. Contudo, eles falham nas tentativas de construção de jump scares por conta de uma mise-en-scène concebida sem tanta criatividade.

Ao mesmo tempo que tais experiências passadas irrompem, o processo de reinserção social desencadeia dilemas e dificuldades. Uma parcela da população protesta contra a liberação dos curados da quarentena alegando que ainda seriam ameaças violentas; os curados são colocados em profissões distintas daquelas que faziam anteriormente ou sem capacitação para fazê-las; as pichações em muros e cartazes expressam visualmente o descontentamento da população imune à praga; e a postura truculenta das autoridades no acompanhamento aos ex-infectados, recorrendo à violência, ao abuso sexual ou à intimidação psicológica. Nesse sentido, é como se, de alguma forma, a violência pudesse ser justificada dependendo do alvo.

Essa difícil reintegração leva a metáforas em muitas dimensões. Pode ser a situação de ex-presidiários deixando a prisão, o descaso do Estado com as camadas populares residente nas periferias ou, como o filme se passa na Irlanda, a questão dos conflitos religiosos entre católicos e protestantes. São alegorias possibilitadoras da criação de um universo simbólico para a segregação social, estabelecido pela relação entre os curados, os imunes e os resistentes e pelo design de produção concebido nos muros, cartazes e espaços que traduzem a desigualdade. Dentro dessas categorias, ainda se constitui um grupo anticura e a Aliança dos Curados, esta como uma resposta extrema em referência ao IRA.

As duas camadas dramáticas do roteiro se sustentam nos arcos dos três personagens principais, resultantes das suas diferentes reações à problemática da reinserção social. Senan atravessa sua jornada de retorno ao lar com a cunhada e o sobrinho, precisando conviver com as terríveis recordações do passado recente e enfrentar os impasses de como se comportar diante da discriminação do governo e de parte da população; Conor exemplifica os muitos outros casos de curados excluídos pela família e inseridos em um trabalho desagradável, que acaba aderindo a uma forma de manifestação radical; e Abbie se configura como a personagem síntese para o debate acerca da aceitação daqueles que já erraram intensamente através de seu conflito entre perdoar ou não o que ocorreu com sua família.

De início, o drama em torno das consequências da cura aparece em sequências intimistas, reflexivas, de ritmo cadenciado e com planos relativamente estáticos ou de pouca movimentação da câmera. O desenvolvimento da veia dramática, contudo, fica estagnado quando as metáforas são apresentadas e as complicações progressivas custam a vir para intensificar os conflitos e anunciar os clímaces para os personagens. Na virada do segundo para o terceiro ato, o filme se reencontra tendo como base as ações extremas feitas pelo Estado e por alguns curados que conduzem a narrativa em direção ao caos de uma área desestabilizada pelos conflitos sociais – é o segmento em que o drama dá lugar a sequências de ação filmadas com maior eficiência do que os jump scares anteriores.

Mesmo tendo problemas na composição de momentos de terror e da progressão das metáforas para os conflitos dos personagens, “Os Curados” não se furta a deixar de lado os clichês recorrentes de filmes de zumbis. A aposta em colocar as criaturas em uma história dramática voltada para uma incomum abordagem social coloca um frescor convidativo para a produção. Trazer à tona a dificuldade de lidar com reinserção de indivíduos marginalizados à sociedade diz muito sobre como nós podemos nos julgar sadios e não enxergar a verdadeira praga em nosso interior. Podendo ser ela metafórica ou explicitamente cruel.

Ygor Pires
@YgorPiresM

Compartilhe