Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Coringa (2019): de Narciso a Sade [TIFF 2019]

Todd Phillips entrega um grandioso estudo de personagem do vilão mais icônico do Universo DC e Joaquin Phoenix se entrega de corpo e alma, mas o tom dúbio pode desvirtuar a mensagem do filme.

O que faz alguém se tornar um pária da sociedade? Azar, injustiça, um pouco dos dois, talvez? Mas qual a responsabilidade do indivíduo nisso tudo? Ele tem o poder de mudar, de dar a volta por cima, ou está realmente no fundo do poço e a única saída é cavar mais fundo? Essas são algumas questões levantadas por “Coringa”, do diretor Todd Phillips, que saiu das comédias para fazer um estudo de personagem sobre o rival mais famoso do Batman nos quadrinhos da DC, embora não se trate de uma história canônica.

O longa apresenta Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem solitário e deprimido que mora com a mãe, trabalha em um subemprego como palhaço de rua e enfrenta diversos problemas de saúde mental, como crises de riso incontroláveis por conta de traumas na infância dos quais não se lembra. Ele sonha em ser comediante um dia e participar do talk show do apresentador Murray Franklin (Robert DeNiro), enquanto sua mãe envia cartas e mais cartas pedindo ajuda ao magnata da cidade de Gothan Thomas Wayne, na esperança de que ela e Arthur possam ter uma vida melhor.

Phillips mexeu em um vespeiro: fazer um filme de origem sobre um personagem que não tem origem definida. Mesmo que não tenha compromisso algum com a linha do tempo estabelecida pelo Universo Estendido da DC nos cinemas, ele comprou uma boa briga no quesito expectativa dos fãs do Coringa. Mas a performance de Phoenix entrega algo fresco – com referências que passam por “Taxi Driver”, “O Homem que Ri” e a famosa HQ de Alan Moore “A Piada Mortal”. Ele se entrega à loucura e demonstra física e emocionalmente o resultado do acúmulo de desgraças na vida de Arthur Fleck.

A transformação de Arthur no Coringa é o que consagra o roteiro, que poderia ser só mais uma história batida sobre um homem que se vê como vítima das circunstâncias. O público se pega sentindo pena de alguém tão miserável. Mas quanto mais infelicidades na vida dele, mais bizarra fica sua risada involuntária, menos confiável é seu ponto de vista sobre os acontecimentos e mais errático e perigoso é seu comportamento – o que, talvez, comprometa a interpretação dada ao longa.

O que poderia ser visto como uma crítica aos ataques violentos e tiroteios que permeiam os noticiários norte-americanos acaba se perdendo em uma empatia excessiva ao personagem de Phoenix. Afinal, como é possível alguém não enlouquecer depois de passar pelo que ele passou? E embora o longa seja cuidadoso ao não diagnosticar o personagem principal, é inevitável pensar que Arthur se tornou o Coringa porque “ele é mentalmente instável, olha tudo que ele passou”. É aí que mora o perigo.

Assim como qualquer outro filme, “Coringa” está inserido em um contexto político, social e histórico. Ao colocar um vilão, o principal nêmesis do Batman, sob os holofotes e contar uma possível história de origem sobre o palhaço do crime, é preciso cuidado, ainda mais se ele se tornará o que é por consequência de uma vida repleta de abusos. E o cuidado é justamente em deixar claro que nada justifica a violência, não há desculpas para matar pessoas para chamar a atenção e se sentir alguém uma vez na vida. É neste ponto que “Coringa” peca: ao alimentar ao máximo a empatia do espectador, a imagem de vilão pode se perder – e estimular uma série de comportamentos preocupantes, como o ódio que certos grupos de atiradores dos Estados Unidos supostamente sentiam ao planejar ataques a escolas, por exemplo.

O filme não é para ser um manual de como os injustiçados podem conseguir vingança. E sim sobre como não há como defender a violência. Sobre como não dá para pegar leve com o ódio desenfreado. Sobre narcisismo patológico, sobre a importância de valorizar a saúde mental e sobre como não se deve alimentar o ego de alguém com tendências psicopatas.

E aqui vale um parágrafo somente sobre a performance de Joaquin Phoenix neste aspecto: Todd Phillips considera o ator um “agente do caos”, exatamente o que o Coringa é. E ele não decepciona: no final, o que vemos é alguém que só quer ver o mundo pegar fogo e ser adorado por uma horda de seguidores, quase devotos. E Phoenix mostra, com louvor, uma verdadeira transformação emocional, a ponto de quase convencer o público de que Arthur é uma pessoa confiável para contar uma história – até que expectativas se quebram e é possível ver o Coringa na sua forma mais anárquica e sádica.

“Coringa” mergulha de cabeça na psique de um ser humano problemático e sem limites, às vezes até demais. Mas entrega um longa que faz jus ao protagonista: problemático, perturbado, sem limites e catártico.

*Filme visto no 44º Festival Internacional de Cinema de Toronto.

Jacqueline Elise

Compartilhe