Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Midsommar – O Mal Não Espera a Noite (2019): cortando e matando relações

Em seu segundo trabalho autoral, Ari Aster usa o absurdo, o involuntariamente engraçado e o grotesco para falar sobre relacionamentos e, novamente, sobre a possibilidade de controlar o destino.

A tristeza que acompanha o fim de um relacionamento que já foi bom é uma das sensações mais angustiantes que o ser humano é capaz de sentir. Porém, talvez haja uma dor maior: aquela que antecede o término, quando cada ação do parceiro ou da parceira é posta sob um microscópio na tentativa desesperada de reacender a chama ou de tentar prever o fim. Foi nesta situação que Ari Aster, diretor de “Hereditário”, viu um terreno fértil para seu segundo filme, “Midsommar – O Mal Não Espera a Noite”.

Com um subtítulo adaptado que mal condiz com seu conteúdo, o longa retrata a história de Dani (interpretada por uma afiada Florence Pugh) e seu namorado Christian (Jack Reynor). Dani sofre de depressão e ansiedade e enfrenta dois problemas gigantescos: o distanciamento emocional de seu parceiro (especialmente quando ela está em suas crises mais agudas) e uma tragédia imensurável que acaba com a vida de seus pais e de sua irmã. Para completar, os amigos de Christian não param de pilhar sua cabeça para que ele termine com Dani. Após a tragédia, Christian tenta consertar as coisas: o que era pra ser uma viagem hedonista planejada em segredo com os “brothers” para a Suécia, durante um ritual de solstício de verão, vira um convite para Dani sair do ambiente fúnebre que virou sua casa e ir com eles. Diga-se de passagem que o único que fica realmente contente com a presença dela é Pelle (Vilhelm Blomgren), o colega sueco que guia o grupo durante a viagem. No entanto, o que ocorre no vilarejo onde acontecem as festividades é uma mistura de horror, absurdo, desconforto e mais demonstrações de que não só a relação de Dani e Christian está à beira da morte, como muitos dos participantes do ritual também estão.

Assim como em “Hereditário”, Aster também faz questão de falar sobre controle em “Midsommar”, ou a falta dele: Dani não consegue controlar pessoas imprevisíveis como sua irmã bipolar, assim como muitas vezes não conseguimos impedir quando alguém decide morrer por conta própria. Porém, talvez, em “Midsommar”, Aster dê mais chances de seus personagens tomarem decisões e viverem as consequências, ao contrário da família de Toni Collette no primeiro longa, que teve seu destino traçado pela própria mãe mesmo após sua morte.

O corte do diretor (versão exibida em alguns cinemas do exterior), inclusive, se aprofunda no estado mental de Dani. As cenas adicionais dão uma dimensão completa de como as crises da personagem ocorrem e como seu relacionamento faz com que seu estado mental se decomponha mais rápido. A atuação de Pugh também merece toda a atenção. Logo percebe-se que a atriz teve o cuidado de retratar as angústias da personagem de forma que o espectador consegue se ver em seu lugar.

Além disso, o diretor faz questão de estabelecer um estilo próprio com os movimentos de câmera e cenas que lembram a casa de bonecas realistas de seu début (que foi essencial para ditar a narrativa do controle naquela história). A diferença é que, em “Midsommar”, Aster pesa a mão no gore e não poupa o público de cenas grotescas – como se a cabeça decapitada de Milly Shapiro sendo comida por formigas no primeiro filme não fosse o suficiente.

O longa ultrapassa a discussão sobre pessoas tentando controlar seu destino. “Midsommar” também fala muito sobre a sensação e a necessidade do ser humano de pertencimento a um grupo: se em “Hereditário” tínhamos a presença de uma seita demoníaca; aqui, temos um grupo que acredita em seu próprio poder de renovação, permitindo a entrada de forasteiros não só para testemunhar ou se sacrificar em nome do ritual, mas também para fazer parte dela. Ainda mais aqueles que se veem cada vez mais sem propósito, como toda boa seita costuma fazer para aliciar mais membros.

Conforme a história avança, Dani se sente mais e mais alheia da vida de Christian, que por sua vez também não faz ideia do que quer. Para piorar, Dani teve sua família removida contra sua vontade de seu convívio. É aí que ela encontra, em outro país, um grupo de pessoas peculiares que a trata como família. Tal grupo é disposto a sentir empatia, mesmo que por motivos macabros. Pela primeira vez em tempos, ela se sente parte de algo que realmente faz questão de sua presença, que enxerga e sente junto a ela seu choro desesperado e comemora suas alegrias. Lar é onde o coração está.

No entanto, não dá para se enganar: todos ali são somente peças de um tabuleiro gigante, membros necessários para algo muito maior, o ritual de solstício de verão, no qual os forasteiros são forçados a testemunhar e participar de atos muitas vezes contra sua vontade. Eles se esforçam ao máximo para entender os motivos reais daquele grupo e inventar justificativas estapafúrdias para não expor ao mundo o que acontece ali.

Mais que um bom filme de terror gravado quase que totalmente sob a luz do dia, “Midsommar”, especialmente a versão do diretor, é um ótimo retrato sobre transtornos mentais, além de se afundar sem pudores nos momentos desconfortáveis que cravam o fim de uma relação ruim. O humor e o tom do filme são oscilantes, assim como a relação entre Dani e Christian: quando acredita-se que tudo vai ficar bem, algo estranho ou chocante acontece e mais uma vez eles se vêem à beira do penhasco. O riso é causado por, muitas vezes, não saber como reagir ao que está sendo exibido. O absurdo é o verdadeiro fio condutor da história.

Jacqueline Elise

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