Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 04 de setembro de 2019

It – Capítulo 2 (2019): vencendo traumas de infância

Mantendo o foco na importância da amizade para derrotar nossos monstros internos, Andy Muschietti entrega um filme digno da grandiosidade do material original e consegue avançar a primeira parte da história, acrescentando novas camadas ao terror criado por Stephen King.

A conclusão de uma grande obra costuma atormentar todo grande autor. Em “A Coisa”, Stephen King se viu diante de mais de mil páginas e uma história sobre uma criatura milenar, que se alimenta do medo (um paralelo interessante com “A Hora do Pesadelo”, mencionado neste filme inclusive), mas que por ele pode ser derrotado. “It – Capítulo 2” parte deste problema e o resultado é uma conclusão natural para o que foi introduzido na primeira parte da história.

A história tem início 27 anos após os acontecimentos do primeiro filme, quando o palhaço Pennywise (Bill Skarsgård) desperta de seu longo sono e começa a se alimentar novamente. Após um assassinato com uma conclusão estranha, Mike Hanlon (Isaiah Mustafa) precisa chamar seus antigos amigos, Bill (James McAvoy), Eddie Kaspbrak (James Ransone), Richie (Bill Hader), Beverly (Jessica Chastain), Ben (Jay Ryan), e Stanley Uris (Andy Bean), para acabar de vez com a terrível entidade que quase os matou quando crianças.

Após um sucesso de bilheteria e crítica, Andy Muschietti (“Mama”) se mostra mais confortável para explorar as inúmeras possibilidades que o livro de Stephen King cria. Ele deixa claro logo nos minutos iniciais que a abordagem aqui será mais fiel que a primeira parte, reconstruindo diversos capítulos, em um trabalho de adaptação meticuloso. Desde o primeiro ataque de Pennywise, após seu despertar, seguindo para as ligações que irão trazer os antigos amigos de volta a Derry. No entanto, Muschietti também reconhece a necessidade de atualizar o texto original, o que faz com que a obra ganhe novas camadas que o livro nem ao menos passa perto. O resultado é um filme que consegue captar a essência máxima de um livro complexo, mas ao mesmo tempo oferecer um conteúdo único, que se apoia no material original, mas nunca se prende a ele.

Isso oferece uma nova interpretação ao primeiro capítulo. Parece natural que Muschietti já tivesse uma visão dos dois filmes juntos ao gravar o primeiro. Assim, esta sequência não apenas deixa a primeira mais completa, como irá se sustentar nos acontecimentos do passado para construir toda a sua carga dramática e, consequentemente, seu terror. Não por acaso, o filme tem início com um prólogo – uma versão estendida da cena final da primeira parte – que retoma as marcas deixadas por Pennywise, mas também já nos adianta as consequências do futuro.

E é no salto temporal que “It: Capítulo 2” encontra seu maior apelo. A escolha do elenco é um dos grandes acertos do filme, sendo possível reconhecer as crianças em suas versões adultas, seja pela semelhança física, seja pelo competente trabalho de atuação. Os atores adultos simulam cada uma das pequenas características apresentadas pelas crianças, o que se torna essencial, uma vez que, assim como na primeira parte, este é um filme sobre traumas de infância. É importante que o público reconheça que quem está lutando é o mesmo grupo do primeiro filme, porém agora a opção de lutar não é movida por um instinto de sobrevivência, mas por motivações pessoais.

Essa conexão entre passado e presente é mostrada em tela em diversas situações. O filme transita em momentos que os adultos se veem sozinhos e, impotentes, se enxergam como crianças novamente. As mudanças acontecem com um inteligente uso da fotografia, investe em plongées e contra-plongées para mudar a perspectiva e apresentar os adultos de um ângulo que sugere impotência frente ao mal que os persegue, logo passa a ser natural enxergá-los como crianças.

O roteiro, então, trabalha com pequenas sutilezas para mostrar ao público que cada um dos Otários carregou uma marca consigo, como pode ser visto em Bev ou Eddie, que se casaram com versões alternativas de seus próprios pais. E com isso é possível ver que as personagens ganham camadas, que não soam forçadas, mas reforçam traços já conhecidos pelo público. Richie, por exemplo, tornou-se comediante (e a escolha por um dublador para o papel da personagem mostrou-se fundamental), mas continua usando o humor como uma forma de lidar com seus medos.

Toda essa (re)construção de personagens é fundamental para que o roteiro consiga desenvolver o tipo de terror proposto aqui. Não se espera causar medo através do óbvio, mas sim a partir de traumas internos, que foram apresentados no primeiro filme (e construídos durante a infância). Assim, como em uma sessão de terapia, vencer Pennywise depende apenas dos amigos conseguirem confrontar seus medos internos. E, novamente, isso é feito através da amizade. Essa conexão torna o projeto mais coeso, sendo fácil enxergar um único filme, mesmo que dividido em duas partes. Muschietti ainda consegue aprofundar esta ideia colocando as personagens em situações de perigo isolado, e precisando aceitar a ajuda dos outros para conseguirem dar um fim a um mal maior. Na sua essência, o monstro que a história tenta vender não é um palhaço, e faz isso com sutilezas que poucos filmes do gênero conseguem executar.

Contudo, tamanha ambição vem com um preço, e aqui é a sua longa duração. Se não chega a ser injustificada (afinal, material para isso há), as quase três horas são mal aproveitadas, criando alguns argumentos que não avançam a trama principal. É possível sentir o peso da edição nestes momentos, sobretudo quando o roteiro decide trazer Henry Bowers (Teach Grant) de volta. Assim como houve uma escolha razoável por abandonar outros subplots com personagens menores do livro, sua presença aqui é prolongada e desnecessária. Suas ações não interferem no desenvolvimento da história e é possível perceber como o roteiro procura se livrar rápido dele para poder avançar em coisas mais relevantes.

A conclusão em “It: Capítulo Dois” é digna da obra original e forma um complemento à altura da primeira parte. O resultado é um filme ousado, justamente por investir mais no complexo conceito criado para o livro. Como uma obra de terror, busca se desprender dos clichês do gênero, partindo para uma abordagem própria e inteligente. Há ainda espaço para brincadeiras metalinguísticas, em especial com Stephen King, que sempre foi acusado de escrever finais ruins para seus livros (o próprio autor surge em determinado momento para reforçar a autorreferência).

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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