Com um tema universal e pano de fundo que se aplica a diversas periferias da América Latina, inclusive ao Brasil, a obra discute sobre necessidades intrínsecas à alma, de mudança e fuga, representadas por dois jovens que fazem de tudo para alcançá-las, mesmo que o preço seja caro demais.
“Chicuarotes” abre com uma sequência num velho ônibus. Dois jovens caracterizados de palhaço entram, fazem piadas e gracinhas, porém não conseguem nem risadas, nem moedas do público. A partir daí eles têm duas escolhas: apesar da frustração, serem bons e irem embora de mãos vazias, ou maus. Escolhida a última, um deles puxa uma arma e assalta todos os passageiros. Foram apresentados então Cagalera (Benny Emmanuel) e Moloteco (Gabriel Carbajal), meninos da periferia da Cidade do México que tentam sobreviver. Essa sequência praticamente resume todo o tom do filme e é tão brilhante que fica difícil para o resto do longa se equiparar e ocorre até uma certa decepção
Segundo o teórico iluminista John Locke, o “homem é produto do meio”. Uma tábula rasa, ele é exatamente o que é impresso nele, no caso da película de Gael García Bernal: a pobreza, violência, machismo e principalmente a falta de amor. Cagalera é de um lar destruído, com um pai beberrão que bate e humilha a mãe, que está tão ocupada tentando sobreviver que não consegue cuidar e dar afeto para nenhum dos filhos. Moloteco é um solitário órfão. Apesar de todos esses elementos, a temática principal é o escapismo, que está atrelado à alma do homem. A ideia de fugir daquele lugar urge na dupla, que adota a ideia de que os fins justificam os meios. Então, tomam terríveis decisões e escolhas, desde roubos até o sequestro de uma criança, filha do açougueiro que tem prestígio e privilégios na vila, para conseguirem seus objetivos.
Aqui a experiência do diretor como ator faz toda a diferença, pois consegue guiar e explorar seus intérpretes para que criem uma profundidade aos personagens. Merece destaque o papel de Moloteco, que é interpretado por um ator não profissional, sensível, que pouco verbaliza, mas todo o seu trabalho corporal é muito bem feito e passa muito bem as emoções. Enquanto para Cagalera ser palhaço era só uma forma para conseguir dinheiro, para ele era um sonho. Mesmo descaracterizado tem um semblante de palhaço triste, que recorda o Pierrôt.
Encontramos muitos elementos escatológicos como a degolação de um animal vivo, um morto homem no meio da rua. As próprias pessoas da vila têm um aspecto sujo e nojento, criando um asco no espectador. Uma figura que retrata muito bem essa característica é Baturro. Apesar de não ser nem chamado de pai pelo filho, é o pai de Cagalera (nome que tem como uma das traduções a palavra diarréia) e seus dois irmãos, está sempre suado, com o cabelo seboso, desalinhado e sujo. É uma espécie de representação carnal do lugar onde moram. Ao mesmo tempo, há uma estética muito sensível, de maneirismos documentais, como vários e longos planos sequências. Também tem uma direção de arte bem realista, com elementos que se repetem em vários cenários como uma forma de assinatura, como o uso de luzes pisca-pisca coloridas, que são destaque em meio a uma paleta arenosa e sóbria.
Assim, pode-se dizer que acompanhar a jornada dessa dupla traz muitas emoções e mexe com as entranhas de quem o assiste. Com uma excelente direção de atores e a própria escolha dos mesmos, roteiro complexo e cheio de minuciosidades, “Chicuarotes” é uma obra completa e que merece ser aplaudida de pé.