Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 08 de setembro de 2019

Chamas da Vingança (1984): potencial incendiado

Fraco e superficial, o suspense peca em transmitir a essência humana das obras de Stephen King, deixando um gosto amargo de que poderia ser algo muito mais marcante e especial.

O escritor Stephen King já demonstrou inúmeras vezes sua imensa habilidade no desenvolvimento de protagonistas jovens. Responsável por grandes marcos literários, caso do memorável “It – A Coisa”, ele se tornou um mestre na criação de narrativas conduzidas por crianças, inventor de um estilo até hoje muito influente (haja visto, entre outros exemplos, a oitentista “Stranger Things“). Tais produtos de sua fértil imaginação, além disso, renderam excelentes adaptações cinematográficas, clássicos, como o “Conta Comigo” de Rob Reiner (“Louca Obsessão“), que foram eternizados por grandes cineastas. Nem sempre, entretanto, a cativante garotada de King encontra um bom formato nas telonas, infelicidade perfeitamente exemplificada pelo tenebroso “Chamas da Vingança“.

Um homem e sua filha fogem pelas ruas da cidade. Perseguidos por misteriosos agentes de preto, ambos correm desesperadamente por suas vidas, atormentados por um peculiar segredo do passado. O suspense, no entanto, não se estende por muito tempo, e logo um rápido flashback atropela a cena inicial, revelando mais informações a respeito dos nossos protagonistas. É dessa forma que conhecemos Andrew McGee (David Keith), um ex-voluntário de um obscuro projeto governamental voltado ao teste de substâncias ílicitas. Em uma urgente busca por dinheiro, ele se submete (anos antes aos acontecimentos do longa) a perigosos procedimentos, experiências nas quais não só conhece sua futura esposa, Victoria Tomlinson (Heather Locklear), como também é recompensado, ao lado da amada, com sobrenaturais habilidades psiquícas. Muito poderoso, todavia, o casal se vê obrigado a escapar dos perpetuadores do experimento, fugindo com sucesso e, tempos depois, dando à luz a adorável Charlene (interpretada por uma fofa Drew Barrymore com nove anos de idade, atriz da série “Santa Clarita Diet“), uma garotinha equipada com dons pirotécnicos. É essa a interessante premissa (criada por King e uma curiosa mescla entre “X–Men” e “Arquivo X“) que o diretor Mark L. Lester (“Comando para Matar“) consegue desperdiçar tão tristemente, “conquista” pela qual não merece ser o único responsabilizado.

Uma vez finalizada a pouco inspirada introdução, o diretor segue na tentativa de construir algo original, investindo em um longa fragmentado em dois atos bastante distintos entre si. Enquanto na primeira metade do filme o espectador acompanha um clássico “thriller” de perseguição, seguindo a dupla central enquanto a mesma alterna entre improváveis aliados e novos esconderijos, este se depara, mais à frente, com uma bem-vinda reviravolta, a qual restringe o restante da obra a praticamente um único cenário (abordagem arriscada, mas que pode funcionar nas mãos de uma boa equipe). Para tal, no entanto, Lester não tarda em abandonar o saturado recurso dos minutos iniciais, esquivando-se de necessárias explicações acerca dos experimentos apresentados anteriormente (tornando difícil entender a motivação dos antagonistas) em nome de esquecíveis (mesmo que temporariamente envolventes) sequências de ação.

A incapacidade na admnistração do ritmo e foco da obra, todavia, não é o principal motivo para o fracasso da abordagem, esta que é verdadeiramente arruinada pelo péssimo desenvolvimento de personagens, função que não cabe apenas ao homem atrás das câmeras. Superficial, o roteiro (assinado por Stanley Mann, do fraco “Conan, o Destruidor“) falha em transmitir de forma convincente os dilemas da pequena super-heroína, supostamente dividida entre o medo de perder o controle sobre os seus poderes e a necessidade de usá-los nos momentos de maior perigo. Retira-se, dessa forma, um importante ingrediente nas transposições dos livros de King para as telonas: a presença de comoventes traços de humanidade, até mesmo nas mais bizarras e sobrehumanas figuras, ponte para trabalhar importantes temas dramáticos. Essa medida não só determina um grande vazio no arco da importante personagem de Barrymore (cujas evoluções no manuseio do fogo não têm peso algum), como também atrapalha a vontade do público de persistir até o final. Se não bastasse, a escassez de carisma partilhada pelos habitantes do universo de “Chamas da Vingança” (não sendo Charlene a única afetada por esse problema) é, ainda, amplificada pelo medíocre desempenho do elenco, este que garante desde atores literalmente lendo suas falas para a plateia, destituídos de quaisquer sentimentos, até um caricato vilão interpretado por Martin Sheen (“Apocalipse Now”). A maior frustação, entretanto, volta-se à dupla principal, incapaz de conquistar o público através da sua relação entre pai e filha.

Nem tudo, ao menos, é tão sofrível, visto que o filme apresenta satisfatórios efeitos especiais (embora nada exepcionais), permitindo que as cenas de ação divirtam a audiência enquanto trabalham diversas maneiras de testar os poderes da explosiva garota. Isso, é claro, sem falar do agradável caçador de aluguel incorporado pelo ator George C. Scott (do excelente “Doutor Fantástico“), capanga que, mesmo um pouco raso, consegue variar bem entre a inocência e a maldade por trás de seu enfadonho tapa-olho. Pequenos, porém, esses aspectos são insuficientes para compensar os numerosos erros da produção.

Cansativo e vazio, “Chamas da Vingança” é uma esquecível adaptação de um curioso conto de Stephen King. Vagaroso, o filme peca na construção de uma trama envolvente e de personagens cativantes, retirando a essência através da qual o autor conquistou tantos fãs. Um excelente exemplo de que nem sempre a adaptação de boa literatura é garantia de sucesso na sétima arte.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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