Filme ilustra a habilidade que Stephen King tem para o drama, levando o espectador numa jornada emocional mística que discorre sobre a capacidade humana para o bem e para o mal.
Stephen King é famoso por seus inúmeros romances de terror, tendo tido muitas de suas obras adaptadas para o cinema. De vez em quando, o autor se arrisca em dramas, e Hollywood não iria deixar passar a chance de novas adaptações de um escritor tão conhecido e lucrativo. Houve filmes como “Conta Comigo” que marcaram uma geração nos anos 80 e outros que se provaram obras primas da sétima arte, como “Um Sonho de Liberdade”, escrito e dirigido por Frank Darabont, que cinco anos depois lançaria o igualmente incrível “À Espera de um Milagre”.
Adaptado do livro homônimo de King (anteriormente chamado “No Corredor da Morte” no Brasil, mas cujo título foi alterado após o sucesso do filme), o longa abre em 1999 com seu protagonista já idoso Paul Edgecomb (Dabbs Greer) revivendo suas memórias trabalhando como chefe da guarda na “milha verde”, apelido dado ao Bloco E do presídio em questão onde ficavam os prisioneiros condenados à morte.
Sua narração é a deixa para Darabont, novamente responsável por roteiro e direção, transportar o espectador para 1935 e mostrar Edgecomb em sua rotina de trabalho e lidando com uma severa e dolorosa infecção urinária. O personagem principal é interpretado por Tom Hanks, que teria sido o protagonista em “Um Sonho de Liberdade”, mas estava ocupado com “Forrest Gump”, o que o incentivou a aceitar esse papel para finalmente trabalhar com o diretor. Com a filosofia de manter os prisioneiros calmos e tendo uma ótima relação de trabalho com seus colegas, Hanks nos apresenta um homem centrado e assertivo, mas cuja paz está ameaçada pelo novo recruta Percy Wetmore (Doug Hutchison), um jovem mimado que usa sadismo e violência para assediar outros guardas e prisioneiros sem receio de consequências, já que tem a proteção do tio, governador do estado. Hutchison acerta em cheio não só em apresentar um bully irritante e ridículo, mas também em deixar transparecer uma gigantesca camada de insegurança e covardia que o personagem tenta, em vão, esconder.
Outros dois recém-chegados também agitam a rotina do local. O primeiro é William Wharton (o excelente Sam Rockwell, de “Vice”, entregando um personagem asqueroso e desumano), e o segundo é John Coffey (Michael Clarke Duncan, no melhor trabalho de sua vida), um homem negro de mais de dois metros de altura e extremamente musculoso, condenado após o estupro de duas meninas brancas. Stephen King revelou que tomou a decisão de que Coffey fosse negro porque, dado o contexto histórico, social e cultural dos Estados Unidos da época, não haveria dúvidas de que ele seria condenado à morte. O comentário do autor tem o peso real quando a história é revelada, o que não será feito aqui para evitar spoilers.
Apesar de condenado por um crime horrendo e de sua estatura imponente, Coffey é gentil, medroso, e parece ter a capacidade mental de uma criança. O contraste de sua figura física com sua maneira de se portar, tendo até medo do escuro, pega o espectador pela curiosidade desde o início, convidando-o a embarcar numa jornada emocional imprevista que discorre sobre a crueldade e a bondade de que o ser humano é capaz. Darabont disse em uma entrevista que esse filme não funcionaria se o ator que interpretasse Coffey não fosse perfeito, e não é exagero dizer que Duncan estava perfeito neste papel. Frágil e vulnerável, ele consegue conquistar os guardas e o próprio público, levantando questões morais a todos que se pegam perguntando a si mesmos como estão se sentindo conectados com um ser capaz de crime tão hediondo; e acredite, a resposta vem, e quando o faz, prepare-se para um impacto emocional que poucos longas conseguem dar. Duncan foi merecidamente indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante por este papel.
É interessante notar técnicas de perspectiva forçada similares às usadas na trilogia “O Senhor dos Anéis” para ilustrar as diferenças de tamanho entre os personagens. Duncan era um homem realmente grande, mas não era tão mais alto assim do que os outros atores. Com uso de ângulos de câmeras, plataformas e versões menores de móveis com os quais ele interagia, a ilusão foi facilmente criada. Além disso, a direção de Darabont é precisa. Não só se valendo de ângulos para ajudar a passar a ideia do tamanho de Coffey, mas também para transmitir uma mescla de poder e vulnerabilidade que impressiona, tudo aliado com closes nas horas certas e composições de cena que dizem muito. Veja, por exemplo, a cena em que um personagem assiste a um filme, e a luz do projetor passa por cima de sua cabeça, que com o contra plongée (câmera de baixo para cima) certo, dá a ideia de algo etéreo e angelical. Este artifício fica ainda mais relevante quando, após uma hora, o filme apresenta um elemento místico altamente inesperado que causa uma grande mudança de expectativa e escopo, que é bem encaixada na trama e eleva a força das jornadas emocionais dos envolvidos.
Muitos outros elogios cabem a este longa, desde os outros atores e os arcos de seus personagens até os figurinos e cenários impecáveis não só para retratar a época, mas para ter função narrativa de relevância. Porém, esta crítica acabaria ficando tão longa quanto o filme (pouco mais de três horas). O ponto chave é que este é um trabalho belíssimo, que ressalta que Stephen King tem uma sensibilidade para drama que rivaliza com sua habilidade em criar histórias de terror, e que aqui é bem adaptada por pessoas que claramente entenderam o espírito da obra literária. Com atores inspirados, roteiro redondo e direção afiada, “À Espera de um Milagre” é melancolicamente tocante.