Com comentários sobre o doente comportamento humano em relação à tecnologia, “Upgrade” é uma frenética atualização do clássico "Robocop" (1987).
Há exatamente uma década o estrondoso sucesso do found footage “Atividade Paranormal” tornava conhecida a pequenina Blumhouse, produtora fundada por Jason Blum que se consagraria como a casa dos longas de baixo orçamento, lucrativas conquistas igualmente (em boa parte dos casos) agraciadas pela crítica. Envolvida com grandes gênios do suspense e do terror, a empresa encontrou neste último a sua especialidade, dedicada não só a espalhar bons sustos através das salas de cinema, como também a descobrir novos mestres do gênero durante sua trajetória (caso do exemplar Jordan Peele, diretor do primoroso “Corra!”). Todavia, e principalmente em um mercado dominado pela falta de criatividade e por repetições desgastantes, é sempre um prazer presenciar alguém buscando se reinventar e transcender sua zona de conforto, sendo justamente essa a intenção da companhia com seu recente “Upgrade”, thriller que mescla ares de “Black Mirror” e “Robocop” na tentativa de trazer algo único.
Em um futuro totalmente controlado pela tecnologia, o mecânico Grey Trace (Logan Marshall-Green, “Olhos Que Condenam”) procura manter seu apego ao trabalho manual e não se render às facilitações proporcionadas pelas modernizações científicas. Quando um terrível ataque acaba custando a vida de sua esposa e arranca sua mobilidade, entretanto, ele encontra a chance de se vingar em um ousado experimento: o implante de um avançado chip computadorizado chamado Stem (voz do ator Simon Maiden, “A Vingança Está na Moda”), capaz de resgatar os movimentos de seu corpo e lhe conceder novas habilidades. É a partir dessa curiosa premissa (embora não necessariamente inédita) que o filme se propõe a discutir diversos aspectos da influência eletrônica em nossas vidas, construindo, ao mesmo tempo, um envolvente universo futurista e preenchendo o todo com sequências repletas de sangue. É curioso verificar, porém, que essa mistura de elementos acaba por ser, simultaneamente, o grande erro e acerto da obra.
Do ponto de vista técnico, destaca-se a forma como o reconhecimento das próprias limitações beneficia a criação do mundo de nosso protagonista. O diretor Leigh Whannell (de “Sobrenatural: A Origem”), que aqui também opera como roteirista, mostra saber administrar perfeitamente o reduzido orçamento, montando uma sociedade tão próxima e plausível justamente por não se exceder em efeitos visuais. Mesmo com alguns drones policiais, braços robóticos e carros movidos à inteligência artificial, é fácil aceitar e crer em sua existência, levando o espectador a se questionar se será aquele o nosso modo de vida daqui a alguns anos. A economia proposital nesses detalhes, além disso, é compensada pelo uso de efeitos práticos nos momentos de maior violência, fornecendo um impressionante trabalho de maquiagem (com uma identidade bastante gore) e, em especial, por um inteligente uso da câmera, cuja movimentação robótica e semelhante a de jogos eletrônicos auxilia no desenvolvimento da união entre homem e máquina como um dos principais focos do longa. Com o tempo, no entanto, esse último recurso acaba se tornando repetitivo.
A maneira como essa integração é trabalhada também é um acerto que merece destaque, sendo cativante acompanhar o relacionamento entre Grey e seu “simbionte”, cuja voz ecoa em sua cabeça como uma espécie de consciência. Inicialmente rejeitando toda e qualquer aparelhagem tecnológica, ele se vê totalmente dependente das mesmas, incapaz de sequer movimentar-se sem Stem. Com visão e força ampliadas, encontra no sistema uma ferramenta efetiva para encontrar os assassinos de sua amada, mas à medida que seus métodos vão aumentando em brutalidade, passa a questionar as verdadeiras motivações por trás de suas ações: estaria ele fazendo isso por amor ou sendo controlado, destituído de humanidade tal como um robô, movido por códigos e comandos? A perda de sua independência física reflete diretamente na diminuição de seu caráter humano, lentamente convertido naquilo que mais repudiava (processo semelhante ao que ocorre no aclamado longa de Paul Verhoeven, apenas com a adição de uma roupagem mais atual), natureza e artificialidade passando a se confundir na tela (rendendo, inclusive, uma boa cena em que Grey recebe auxílio em uma sala repleta de usuários imersos em equipamentos de realidade virtual). É nessa transformação que encontramos o grande trunfo de “Upgrade”, sendo impossível se desvencilhar da obra até o seu desfecho.
Por outro lado, a direção de Leigh peca em equilibrar as cenas de ação e os diferentes tópicos que o roteiro decide abordar, de forma que o suspense, especialmente construído ao longo do primeiro ato, é rapidamente atropelado por momentos genéricos. Isso retira um pouco de sua personalidade, bem como compromete um maior aprofundamento da chamativa relação entre Grey e Stem tão bem quanto esta merecia. Além disso, é igualmente prejudicial a superficialidade da atuação de Green, incapaz de conceder para seu personagem as camadas exigidas pelo roteiro, arrancando risos em momentos de suposta grande tensão. Nenhuma dessas falhas, felizmente, é capaz de ofuscar o brilho da produção, esta que ainda reserva um imprevisível ato final, corajoso e extremamente condizente com seu discurso.
Com tudo isso, “Upgrade” é um bem-vindo respiro da Blumhouse. Eletrizante, traz um interessante debate sobre a robotização dos seres humanos por conta dos aparelhos que os cercam, e, mesmo se rendendo a alguns conformismos dos filmes B, faz valer a diferenciada experiência. Dessa forma, comprova, através de um roteiro sagazmente inspirado em novas e antigas batidas do gênero, que ainda há muito o que acrescentar no crescente ramo dos futuros distópicos.