Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 31 de julho de 2019

Privacidade Hackeada (Netflix, 2019): por trás dos crimes da Cambridge Analytica

A partir dos crimes cometidos pela Cambridge Analytica, o documentário tenta expor os riscos que existem ao compartilhar dados tão íntimos em redes sociais que pertencem às maiores empresas do mundo.

Quando os jornais The New York Times e The Observer começaram revelar o que a Cambridge Analytica (CA) estava fazendo com os dados de mais de 70 milhões de usuários do Facebook, o mundo inteiro começou a entender o poder que empresas que trabalham com dados possuem. Todos os tipos de informações, das mais banais às mais íntimas foram utilizadas contra os próprios usuários e tiveram papel decisivo na eleição de Donald Trump, nos EUA, e na votação do Brexit, no Reino Unido, sem que ninguém soubesse ou tivesse autorizado isso. Em “Privacidade Hackeada”, documentário produzido pela Netflix, os diretores Karim Amer e Jehane Noujaim (“The Square”) tentam apresentar a história a partir do ponto de vista de três personagens, enquanto mostram que o tema é muito mais delicado do que se pode imaginar.

Desde março de 2018, quando o escândalo tornou-se conhecido, muita coisa aconteceu e, talvez, pouca coisa tenha mudado. O documentário transita entre estes dois pilares. A jornalista do The Guardian, e finalista do Pulitzer, Carole Cadwalladr, é quem nos apresenta a história do ponto de vista da investigação. O olhar do documentário a coloca como uma defensora da liberdade individual, porém sua participação concentra-se, fundamentalmente, em apontar detalhes mais específicos sobre o caso e suas consequências diretas. Ela também é quem faz a ponte com David Carroll, personagem fundamental em tudo o que diz respeito ao escândalo e também o responsável por aproximar o público do que está sendo apresentado.

Carroll é professor associado da Parsons School of Design, em Nova York, mas sua presença no documentário é motivada por ele ter tentado recuperar seus dados da CA, para saber como eles foram utilizados. De certo modo, o percurso traçado pelos diretores se sustenta em Carroll. É através dele que cada pessoa que está assistindo, uma potencial usuária do Facebook (ou de qualquer outra rede social), pode se sentir ameaçada pela forma como suas informações pessoais estão sendo utilizadas. Ele é um recurso fácil para cativar a empatia do público, porém há muitos méritos na maneira como ele é utilizado para isso. Assim como milhões de usuários, ele foi uma vítima e sua luta para recuperar algo que sempre lhe pertenceu é bem explorada ao longo do documentário.

A terceira personagem é a mais complexa e complicada dos três. Brittany Kaiser foi peça fundamental, nos dois lados do problema. Ela trabalhou na CA e, durante todas as investigações, prestou diversos depoimentos e apresentou diversas evidências dos crimes cometidos pela empresa. Sua figura é essencialmente ambígua, embora o olhar da câmera pareça buscar sua inocência. No entanto, isto não é vendido de forma gratuita e sua parcela de culpa não é escondida, nem pelos diretores, nem por ela mesma. O público ainda tem a liberdade de julgá-la culpada ou inocente (o que não ocorre com Carroll, por exemplo), mas há um cuidado excessivo em não torná-la parte do problema.

Porém, se nenhum deles é tratado como vilão, o documentário precisa encontrar alguém para assumir tal posto. A escolha aqui acaba optando pela solução mais fácil: Mark Zuckerberg e Alexander Nix (CEO da Cambridge Analytica). É, sobretudo, em Nix que o peso dos crimes cai. Embora ao final do documentário seja exibida a mensagem de que ele se recusou a gravar entrevistas, sua imagem nunca é apresentada de maneira positiva. E, embora sua participação seja, invariavelmente, criminosa, ela acaba sendo utilizada como um recurso fácil para contrapor a empatia criada com David Carroll.

Com longos 113 minutos de duração, o documentário se perde em não conseguir tornar um tema tão complexo e com inúmeras minúcias em algo mais simples de ser compreendido. Quem não acompanhou o básico sobre o que aconteceu pode ficar sem entender alguns detalhes. Por outro lado, há um uso criativo e lúdico de efeitos especiais para evidenciar o como tudo o que nós fazemos pode ser resumido em dados que são compartilhados o tempo todo (o que evidencia os crimes cometidos pela CA). Há também uma tentativa de aprofundar o tema, mostrando como tudo o que foi retratado ao longo do documentário está relacionado com outros eventos políticos, como a eleição presidencial no Brasil, em 2018, e o genocídio rohingya em Mianmar, em 2016. Com tudo isso, o mais irônico é que Privacidade Hackeada seja um documentário original da Netflix, uma empresa que constrói seu catálogo a partir dos dados sobre os hábitos de consumo de seus usuários.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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