Documentário mostra como a cultura americana do esporte foi abalada com o caso do médico que abusava de jovens ginastas olímpicas e também toda a negligência em torno da modalidade.
A cultura norte-americana tem como um dos seus pilares o esporte. Filmes e séries nos cansam de mostrar jovens populares entre as garotas, além de respeitados por todos ao seu redor, apenas por fazer parte do time de basquete da escola, por exemplo. Esse incentivo constante não traz apenas benefícios físicos (talvez esse seja a menor das vantagens). O grande benefício reside no aspecto financeiro/profissional, existindo a chance dos mais aptos conseguirem bolsas de estudos nas melhores universidades, aumentando as chances de sucesso no futuro, independente do jovem atleta seguir ou não na carreira esportiva. Esse ciclo econômico move uma parte importante dos Estados Unidos, com ligas profissionais poderosas, como a NFL (futebol americano) ou a NBA (basquete), buscando seus novos talentos nos drafts, eventos onde os melhores estudantes universitários são contratados pelas equipes profissionais. Focando sua narrativa em outro esporte popular na América, a ginástica olímpica, o documentário da HBO “No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica”, investe em uma narrativa real para explicar como a busca por sucesso e vitórias pode cegar todos os envolvidos com o mundo dos esportes.
A produção começa sua narrativa mostrando como é difícil a vida das jovens que desejam se tornar ginastas olímpicas. Além da dedicação diária, elas ainda devem possuir um forte preparo psicológico e físico para suportar as cobranças e humilhações constantes para quem não alcança os resultados esperados. Treinadores frios e duros como os Károlis, casal do leste europeu notório pelas vitórias em olimpíadas passadas (agora trabalhando para os americanos), imprimem uma forma de treinamento cruel, isolando as atletas da vida social e das suas famílias. Além disso, as dores físicas são outra constante na modalidade. Esta situação é o terreno perfeito para surgir o personagem principal do documentário, o médico Larry Nassar. Apresentado como um contraponto à dura forma de agir dos técnicos, sempre frios e afastados das atletas, Larry era, além de médico, um amigo das garotas. Visto como um anjo da guarda delas, oferecia conselhos e era um confidente nos momentos mais difíceis.
O choque entre essas duas culturas, algo muito bem explorado no documentário, acabou facilitando a vida de Nassar. Um personagem dúbio que apresentava uma faceta de bom médico, conforme citado pelas garotas entrevistadas pela diretora Erin Lee Carr (“Mamãe Morta e Querida”), mas que usava métodos pouco convencionais de tratamento. O principal deles consistia em apalpar as garotas em regiões sem direta relação com as lesões, como seios, nádegas e até uma insustentável técnica de massagem vaginal. Tratamentos especiais aplicados no porão da casa do médico eram outra prática chocante, mas visto como normal por pais e até as próprias garotas. Essa inocência, e o sonho de continuar treinando, as impediam de ver os abusos que sofriam. Em 2016 essa história veio à tona, causando grande abalo na sociedade americana.
O mais impactante em tudo que é mostrado, além do próprio fato de as jovens serem abusadas por um adulto, está na negligência de dirigentes, técnicos e outros profissionais envolvidos com Nassar. “No Coração do Ouro” apresenta pessoas coniventes com o médico esportivo por esse “método” trazer resultados positivos para os EUA em Olimpíadas, com medalhas sendo conquistadas. Os olhos desses profissionais se fechavam para os acontecimentos dentro consultório, ou no porão, de Nassar. Qual o custo disso para as garotas abusadas?
O roteiro da produção cresce de forma exponencial conforme a história se desenvolve. No começo conhecemos um médico gente boa, amigo de todas, mas aos poucos, com novas revelações, vai se tornando um monstro. Até chegar no momento mais impactante da história, durante seu julgamento, onde muitas das garotas abusadas leem seu relato para um Larry amargurado com o sofrimento que causou em todas elas. A principal falha da obra é a falta de profundidade na vida do abusador. Seria de grande valia conhecer a infância e a história de vida de Larry para tentar entender seu comportamento. Rotulado como um doente e depois como um pedófilo, falta contexto para tentarmos entender suas motivações. Esse poderia ser um bom caminho para o documentário, que mesmo assim não deixa de impactar com seus comoventes relatos, além de mostrar a união das garotas, outra importante subtrama tratada na história e fator determinante para vencer a indiferença de dirigentes, mídia ou da própria sociedade.
Apresentando um ciclo perverso sempre incentivado por conquistas esportivas, que ajudavam a esconder todos as falhas e desvios da ginástica americana, “No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica” expõe de maneira crua as falhas na tão admirada cultura americana esportiva. O recado aqui é claro: a busca por sucesso constante tem seu custo e suas desvantagens. O problema é que essas falhas não eram vistas, e quando vistas, se olhava para o outro lado. Negócios em primeiro lugar.