Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 23 de abril de 2019

Cuidado com o Slenderman (HBO, 2016): um vírus da mente e dos corações

A lenda urbana Slenderman é retratada de maneira chocante no documentário que conta o crime cometido por duas jovens atemorizadas pelo personagem.

Slender Man: Pesadelo sem Rosto” e “Cuidado com o Slenderman” estão interessados no mesmo tema: a figura assustadora que dá nome às duas produções. Se o primeiro filme ficcional lançado em 2018 foi fraco e insosso, o documentário produzido e lançado pela HBO em 2016 foi o oposto. Ele é mais impactante por trazer a história real do esfaqueamento da jovem Payton pelas amigas de mesma idade Morgan e Anissa, sob a alegação de que precisariam matar a colega para proteger suas famílias do Slenderman. Mesmo não sendo uma narrativa imune a problemas, ele se mostra mais eficiente como cinema do que seu predecessor.

Inicialmente, o filme descreve o crime apontando as circunstâncias em que ocorreram (nove facadas em Payton para deixá-la morrer em uma floresta afastada em 2014) e a influência do personagem misterioso, descrito como uma figura sobrenatural de rosto branco sem expressão, esguia de braços e pernas longos e de terno. O temor de crianças e adolescentes dos EUA em relação a ele é grande devido às suas repentinas aparições para capturar jovens e aos seus poderes telecinéticos. O uso de imagens de formatos distintos e de entrevistas variadas tornam ainda mais chocante a tentativa de assassinato: reportagens de TV da época, depoimentos de Morgan e Anissa para os investigadores em imagens do circuito policial e os relatos feitos no tribunal registrados pela imprensa.

Paralelamente a essas informações, o documentário ouve as famílias das jovens presas. A partir das conversas, é possível abordar a infâncias das duas meninas e suas personalidades incomuns carentes de empatia ou socialização com amigos; a cobrança sentida pelos pais quanto à necessidade de antever o que suas filhas poderiam fazer, mesmo sendo inimaginável algo tão brutal; a dificuldade de lidar com as consequências emocionais do acontecido vivenciada também pelos pais; e os transtornos psicológicos que impedem Morgan e Anisa de distinguir o que é real ou não e as deixam mais suscetíveis ao Slenderman.

Porém, é justamente nesse segmento da narrativa que existem os maiores problemas. Não há o ponto de vista da vítima e de sua família, o que gera o risco de o documentário ser acusado de tomar partido das demais jovens envolvidas ou simplesmente restringir o escopo do caso, deixando de lado parte muito importante dele. Vários depoimentos dos parentes são filmados com frieza, como se percebe nos momentos em que as mães falam e no contraste visto nos relatos dos dois pais, estes mais tocantes e dolorosos. O ritmo narrativo é afetado pela sucessão de depoimentos muito semelhantes que fazem com que o segmento mais inovador seja pouco explorado.

Mesmo com menos tempo de tela, existe uma originalidade na condução do material: a análise da criação do Slenderman como uma lenda urbana surgida em um portal de histórias de terror na Internet e da sua expansão com uma velocidade assustadora até ser considerado real. As entrevistas de psicólogos, especialistas em contos populares e pessoas comuns abordam as características de um personagem capaz de “viralizar” na web por poder circular rapidamente em canais diversos, além do espaço propício para sua multiplicação graças aos inúmeros vídeos ou jogos violentos disponíveis e com muitas visualizações. A arte em geral também pode servir como proposta de interpretação, afinal, Slenderman dialoga com histórias antigas sobre personagens que atraíam crianças por um propósito obscuro (exemplificadas pelo caso do Flautista de Hamelin).

Para além do mundo virtual, o crescimento do personagem também é relacionado a traços da natureza humana e à nossa sociedade. Por trazer um rosto inexpressivo e não emitir nenhum som, ele pode simbolizar quaisquer medos transferidos pelas pessoas e, assim, se adaptar ao que impacta negativamente suas vítimas – o desconhecido é algo que fortalece a apreensão quando ele supostamente aparece. Além disso, em uma sociedade marcada pelo bullying e pelo isolamento social cada vez mais precoce dos jovens, Slenderman pode ser mais um motivo para a fragilização emocional ou uma enganosa fonte de segurança e conforto devido à sua relação com as crianças – algo que causa um mergulho ainda maior em um universo paralelo composto por imagens e ideias assustadoras.

Após as quase duas horas de duração, “Cuidado com o Slenderman” tem oscilações em sua narrativa, sendo bem sucedido em encadear diferentes questões a partir do quase assassinato de Payton, mas nem tanto na inserção de planos aéreos entre as sequências e na ausência do ponto de vista da vítima e de seus familiares (este último ponto sua deficiência mais grave). Mesmo assim, o documentário se sai bem como análise da chocante realidade que nos cerca, muito mais perturbador do que uma ficção pode fazer. Uma realidade violenta em que duas jovens quase matam sua colega e em que o Slenderman se desenvolve atemorizando várias pessoas nos EUA não pode ser ignorada nem subestimada.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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