Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 26 de março de 2019

The Umbrella Academy (Netflix, 1ª Temporada): superfamília disfuncional

Uma disfuncional família de pessoas com poderes especiais precisa resolver suas diferenças e unir forças para salvar o mundo de um desconhecido apocalipse iminente.

Em meio a um cenário repleto de super-heróis da Marvel e da DC Comics, chega na Netflix a adaptação “The Umbrella Academy“, baseada nas HQs criadas por Gerard Way e pelo brasileiro Gabriel Bá, e publicada pela Dark Horse Comics. A série mostra uma visão diferente de uma família de poderosos e seus problemas e perturbações psicológicas.

Em 1º de outubro de 1989, 43 mulheres espalhadas por todo o mundo deram a luz no mesmo momento. Até aí nada demais, a não ser pelo fato de que nenhuma dessas mulheres esteve grávida até esse momento. Com a notícia desses inusitados e misteriosos partos, o excêntrico bilionário Sir Reginald Hargreeves (Colm Feore) decide adotar o máximo de crianças possível (mediante justa compensação às mães, é claro), conseguindo assumir sete delas, e nomeando-as pelos números de 1 a 7. Dotados de poderes especiais (exceto por uma delas), Reginald as cria e as treina para proteger a sociedade e salvar o mundo. Surge então a Umbrella Academy, um grupo de crianças capazes de feitos sobrenaturais que atuam combatendo as forças do mal.

Uma visão diferente sobre super-heróis

No entanto, a história não é sobre os feitos heroicos do grupo. A série nos apresenta uma Umbrella Academy já extinta (restando apenas a casa e suas lembranças), e as crianças metamorfoseadas em adultos problemáticos. Em dado momento o grupo se separou, com cada um dos integrantes seguindo seu caminho. A primeira temporada começa com os irmãos se reencontrando no funeral do pai, Reginald. E é nesse momento que tudo começa a desmoronar.

O Número Um Luther (Tom Hopper), o Número Dois Diego (David Castañeda), a Número Três Allison (Emmy Raver-Lampman), o Número Quatro Klaus (Robert Sheehan) e a Número Sete Vanya (Elliot Page) se encontram na antiga residência da família Hargreeves para dar o último adeus ao pai. É nesse momento em que aparece o Número Cinco (Aidan Gallagher), que havia sumido ainda quando criança, anunciando que o fim do mundo está próximo. Eis que os irmãos devem resolver suas diferenças e se unirem novamente para salvar toda a humanidade. Eles ainda contam com a ajuda do Número Seis Ben (Justin H. Min), falecido por causas misteriosas, graças a Klaus e sua habilidade de se comunicar com os mortos. A primeira temporada da série adapta o primeiro arco da HQ, “Suíte do Apocalipse”, com alguns detalhes do segundo arco “Dallas”, de onde são os vilões Hazel (Cameron Britton) e Cha-Cha (Mary J. Blige).

Super destaques

Por se tratar de uma série de um grupo de heróis, muitos personagens são apresentados em tela. Mais ainda, vemos não apenas o heroísmo de cada um, mas principalmente as nuances que os fazem ser tão diferentes. Heróis disfuncionais, vilões que se questionam, um mordomo macaco e uma mãe androide fazem parte da equação que é “The Umbrella Academy”. Ao longo dos 10 episódios, alguns personagens são desenvolvidos e bem trabalhados, mas outros são ignorados. Alguns coadjuvantes possuem potencial, mas não são aproveitados (em especial devido ao tempo limitado de tela em comparação à quantidade de pessoas).

Mas os grandes destaques vão para Klaus e o jovem Cinco. Com a habilidade de se comunicar com os mortos, Klaus possui não apenas uma carga dramática como também serve de alívio cômico em momentos precisos. Sua personalidade é cativante e surpreendente, e a conexão entre seu vício e o seu poder não apenas é crível como também é totalmente compreensível. A interpretação de Sheehan é estimulante, não só nos levando para junto do personagem, como também nos colocando em seu lugar. Cinco, por sua vez, dá um show de interpretação. Cercado por adultos, esse garoto rouba a cena todas as vezes que aparece, mostrando seu talento e sua incrível capacidade de conduzir a trama. Ele nos faz acreditar ser o que o Cinco realmente é: um amargurado e convencido homem de 58 anos preso no corpo de uma criança de 13. E Gallagher faz isso com maestria.

Mas nem tudo é super

Em uma família de pessoas dotadas de superpoderes encontramos Vanya e sua incrível capacidade de ser… bem, de ser super comum. Excluída do grupo por não possuir poderes, Vanya crescera às sombras dos seus irmãos, sempre escanteada e fora da ação. Isso a tornou uma pessoa deprimida e apática. A interpretação de Elliot Page beira o genérico. Não traz empatia alguma ao papel, muito pelo contrário, causando até uma certa aversão. O que poderia ser uma personagem de identificação com o público, em momento algum faz com que o espectador se importe com ela.

Mudanças da adaptação

A HQ é bastante conhecida pela sua bizarrice e absurdos. Nela, o mundo é um lugar totalmente povoado de situações inusitadas, com o anormal sendo a normalidade. “The Umbrella Academy” segue uma pegada mais realista, focando mais na disfuncionalidade da família do que em seus atos heroicos. Ao invés de vilões caricatos e monstros grotescos, temos situações mais mundanas e inimigos mais comuns. No entanto, a essência dos quadrinhos está presente no live-action, mantendo-se preservada apesar das mudanças.

Uma das principais alterações se deu na etnia dos personagens. O que nas HQs era um grupo de caucasianos, agora possui uma maior diversidade – o que faz mais sentido, uma vez que os irmãos são de diversas partes do planeta -, dando uma melhor visão sobre as diferenças entre eles, além de uma maior representatividade. Allison é negra, Diego é latino, Klaus alemão e Ben asiático. Ainda, a vilã Cha-Cha, originalmente um homem branco nos quadrinhos, agora é uma mulher negra. Um ótimo ponto para a produção.

Os poderes de alguns dos irmãos também sofreram uma repaginação para melhor se adequarem às telinhas. Nos quadrinhos, Allison possui a capacidade de distorcer a realidade segundo a sua vontade, enquanto que na série sua habilidade se resume a induzir nos outros a vontade de seguirem os seus comandos vocais. Já Klaus, que também possuía habilidades telecinéticas, possui apenas a capacidade de se comunicar com os mortos. Luther mantém o seu poder, com a mudança sendo apenas no seu físico (embora bizarro, algo mais próximo da normalidade).

O final da primeira temporada também foi alterado, criando um cliffhanger para uma continuação que não existe no arco da HQ. Os acontecimentos que levam ao desfecho também são diferentes, mas seguem a lógica já definida desde o primeiro episódio.

Mas vale a pena?

A primeira temporada é empolgante e promissora, embora possua “barrigas” em certos momentos da trama. No entanto, as diferentes personalidades e o desenvolvimento das relações familiares nos prendem na frente da telinha, ávidos por saber o que acontecerá em seguida. Os poucos efeitos especiais existentes são muito bem produzidos – as expressões do macaco mordomo Pogo, interpretado por Adam Godley, são incríveis, assim como os saltos de deslocamento do Cinco.

“The Umbrella Academy” é um ótimo exemplo de que a Netflix não depende apenas das grandes DC Comics e Marvel para produzir conteúdo sobre super-heróis, ao mesmo tempo que deixa claro possuir muito conteúdo promissor e de qualidade fora do mainstream. Uma série facilmente “maratonável”.

Aristóteles Fernandes
@rapadura

Compartilhe