Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 27 de março de 2019

A Terra É Plana (2018): cortês com o absurdo

O documentário dirigido por Daniel J. Clark passa uma ideia de imparcial, mas serve para mostrar o quando a concepção dos terraplanistas é absurda e sem fundamentos.

Quem diria que os terraplanistas estariam vencendo a guerra contra a ciência. Estranho né? Pois é, mas depois de assistir “A Terra É Plana” fica claro que, ao menos, é o que eles pensam. O documentário busca mostrar, de uma forma democrática e neutra, as visões de mundo tanto dos que acreditam no formato esférico (ou geoide, mais especificamente) quanto dos que creem estarmos sendo manipulados esse tempo inteiro. O diretor Daniel J. Clark trabalha a todo momento de forma didática para contar as origens e a aparente consolidação do conceito da Terra plana: o planeta onde vivemos seria um disco achatado. Ao redor, segurando os mares, estaria uma gigantesca parede de gelo, a Antártida. Além disso, Sol e Lua se movimentariam em volta de um domo, simulando dia e noite.

A hipótese pode soar estapafúrdia caso ouvida pela primeira vez, mas a Sociedade da Terra Plana (Flat Earth Society em inglês) já é uma realidade há algum tempo, com direito a veículos próprios de divulgação de notícias, departamentos de estudos científicos para provarem seus argumentos, e até mesmo uma grande convenção com palestras e debates sobre o tema. O olhar do diretor tenta ao máximo tratar os terraplanistas com seriedade, contudo, também faz questão de manipular a narrativa para que nós, cientes de que a terra é esférica, nos demos conta do quão absurdas são aquelas ideias e “indicativos” do contrário. Entretanto, dizer que Clark não brinca com eles em tela, ainda que sutilmente, seria mentira. O momento mais impagável é a sequência final, quando um experimento é realizado para provar que a curvatura da Terra não existe. Vale ser visto sem saber o que acontece, embora a resposta já pareça óbvia.

O roteiro de “A Terra É Plana” é bem encadeado, utilizando-se da história dos grandes “pensadores” do terraplanismo para entrelaçar suas cenas. São pessoas comuns e corajosas o suficiente para irem contra tudo o que já foi estabelecido sobre o assunto e, de maneira suave e carismática, tentam atrair mais “seguidores” para a ideia. A principal autoridade mundial no tema é também a mais presente no filme: Mark Sargent, um sujeito que prega à exaustão o fato de não querer chamar atenção, apenas buscar a verdade, embora use (por um tempo considerável) uma camiseta escrita “Eu sou Mark Sargent”. Ouvi-lo falar traz uma perceptível paz, visto que ele tem o jeito de um cidadão comum que não quer guerra com ninguém. Tanto que ele se gaba de conseguir convencer qualquer um apenas com uma simples conversa e uma mente aberta. O perigo é esse discurso antissistema intrínseco à causa, e isso é abordado de forma muito rasa no documentário.

Aparentemente, o fato de uma vertente capaz de contrariar uma ideia consolidada ganhar projeção faz com que outras ideias (essas sim, temerárias) ganhem destaque. Não surpreende encontrar em uma convenção de terraplanistas pessoas que não acreditam na ida do homem à Lua, negacionistas do Holocausto, antivacinas, contra a ideia de aquecimento global… Embora alguns acreditem que essas pessoas prejudicam apenas elas mesmas, algumas dessas noções são essenciais para o bem coletivo, e esses debates se mostram não só desnecessários, mas também nocivos para a população.

As escolhas técnicas de Daniel J. Clark para “A Terra É Plana” possuem seu valor. Porém, o problema é a falta de continuidade dessas opções, deixando a obra sem uma identidade visual clara. Um exemplo é a utilização de ilustrações simples para facilitar o entendimento de certos conceitos. Seu uso é bem-vindo, mas no decorrer da obra o diretor tem a oportunidade de trazer novamente a técnica de forma interessante, no entanto, prefere utilizar outros meios para a explicação. As informações são passadas, só que não de uma maneira uniforme. O único aspecto imutável é a trilha sonora, constante e com um ar quase de tutorial de YouTube.

O documentário é feliz em sua abordagem, pois se vende como imparcial dando voz a especialistas das duas perspectivas, mas se mostra uma agradável ferramenta capaz de desmontar ideias imprudentes da forma mais insustentável possível: simplesmente mostrando como elas são. Ainda que não seja um primor técnico, a obra é eficiente em cumprir o seu objetivo.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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