Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 21 de março de 2019

Nós (2019): Jordan Peele, um novo gênio do terror

Depois de um começo muito elogiado, Jordan Peele retorna ao terror com uma obra livre de autorreferências e explorando o que há de melhor no gênero, num filme que consegue se destacar com facilidade dentro da atual safra.

Quando Jordan Peele lançou “Corra”, seu nome ganhou destaque dentre os fãs do terror pela maneira como ele trabalhou com o gênero, com o domínio sobre a narrativa sendo o mais evidente dos seus méritos. Mas Peele foi além, e o resultado foi um filme de estreia muito acima da média dentro do próprio nicho. Em “Nós”, o diretor não apenas reforça sua habilidade como um construtor de narrativas de terror de alta qualidade, como demonstra capacidade para se aventurar dentro do gênero e criar obras com propostas muito peculiares.

Desta vez, a trama segue uma família que decide tirar férias na praia. Apesar do ambiente divertido, traumas de infância começam afetar Adelaide Wilson (Lupita Nyong’o, de “Pantera Negra”), que percebe que alguns medos são mais reais do que poderia imaginar. Quando uma estranha família surge na porta de sua casa, a vida de sua família pode estar realmente em perigo.

Diferente do que aconteceu com “Corra”, desta vez Peele parte para um terror mais físico do que psicológico. Abraça descaradamente o inusitado e não tem vergonha de ficar sempre perto do bizarro. A influência de John Carpenter nesse sentido torna-se bastante evidente, o que faz com que “Nós” se destaque dentro da atual geração do gênero. Embora a premissa do doppelgänger possa sugerir um terror psicológico, o conceito é abordado pelo lado fantástico, assim como suas consequências. Na prática, esta obra não segue a atual tendência de construir uma narrativa que afete apenas a sanidade do protagonista. O medo é real, e as consequências têm impacto sobre todos os personagens em tela.

E quem nos guia para testemunharmos todo o mal presente no filme é Lupita Nyong’o. Numa atuação memorável, a atriz não deixa dúvidas quanto ao seu potencial, conduzindo o longa com naturalidade e transmitindo todo o medo que a afeta. Ao comparar o que a atriz faz com o seu “eu maligno”, dá-se a impressão de estarmos diante de outra pessoa. Sua fala, sua expressão e toda a forma como se movimenta têm mudanças, das mais sutis às mais evidentes, não deixando dúvidas que, embora seja a mesma atriz, são personagens diferentes. Essa mesma impressão é sentida nos dois filhos do casal. Embora com atores menos experientes, é na versão duplicada onde pode ser observada toda a capacidade de atuação – assim como a dinâmica de Jordan Peele para conduzir seus atores.

“Nós” é construído com conceitos que não são óbvios, em razão disso, por diversas vezes, soa confuso. A relação com o fantástico permite que o diretor trabalhe com um roteiro que utiliza toda a evolução da trama com camadas carregadas de significados. Isso faz com que a obra apresente uma progressão mais complexa. Talvez por isso Peele tenha optado por uma abordagem mais explícita sobre o conflito principal. Diálogos expositivos contam um pouco demais, porém dentro de um filme com incontáveis subtextos, tal problema não causa incômodo nem chama a atenção para si.

E, quando decide abraçar o terror físico, Peele vai fundo e nos presenteia com um longa que retoma o que havia de melhor dentro do nicho da década de 1980. Mesmo não sendo visualmente gore, o filme tem alguns momentos de um delicioso grotesco, provando que não é preciso ser explícito para causar impacto dentro de uma narrativa do gênero. E isso acontece graças à fotografia de Mike Gioulakis (“Vidro”), que trabalha com sombras e enquadramentos precisos, que guiam o público de um canto ao outro de uma sala ou um quarto, sempre causando uma sensação de desconforto por não saber o que está acontecendo fora do campo de visão da lente. Em especial, a cena na casa de espelhos tem uma abordagem da câmera não apenas criativa, mas claustrofóbica, e que serve para criar o primeiro contato com o terror e evidenciar o tom da produção.

Há anos um diretor não se arriscava como Jordan Peele fez em “Nós”. Ao partir de um filme elogiado e que se reconhece dentro do atual cenário de terror para uma obra que sempre remete aos clássicos oitentistas, porém sem soar datado, o diretor deixa claro que tem habilidade com um gênero difícil e que tradicionalmente gosta de se repetir. Peele, por outro lado, mostra que caminha olhando para frente. E com isso nos entrega um longa que possui uma necessária revitalização para o cinema. Sua habilidade e sua capacidade de enxergar o potencial a partir do medo são mais do que admiráveis. Ao sair da sessão, fica a vontade de ver do que mais Jordan Peele é capaz.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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