Tecnicamente perfeita, a série é um raro caso de adaptação literária de alta qualidade. Divertindo com diálogos irônicos e personagens excêntricos muito bem construídos, a obra é material rico para adultos e crianças.
“Desventuras em Série” foi uma saga de 13 livros publicados entre 1999 e 2006 que conta os infortúnios na vida dos órfãos Baudelaire. Ao perderem os pais num incêndio logo no primeiro livro, eles precisam ir viver com um guardião legal e acabam nas garras do terrível Conde Olaf, que basicamente os escraviza e faz de tudo para ter controle sobre a fortuna deixada de herança para as crianças. Elas então precisam se valer de suas personalidades e inteligência para escapar das garras do vilão, que nunca deixa de persegui-los, sempre com disfarces esdrúxulos que enganam todos os adultos, mas não os irmãos. A primeira temporada aborda os quatro primeiros livros da saga e tem Neil Patrick Harris (“Pequena Grande Vida”) como Olaf e grande estrela do programa. Os órfãos Baudelaire são interpretados por Malina Weissman (“Virei um Gato”), Louis Hynes (“O Santo”) e o estreante Presley Smith, como Violet, Klaus e Sunny, respectivamente.
É preciso destacar aqui, e muito, o visual da série. É um clima “Tim Burton” trazido pela direção de arte incrível e por figurinos magníficos, que dão o tom de exagero e fantasia que encaixa bem com a história e com os diálogos. Quanto à trama em si, ela não só cobre os livros muito bem, com mudanças pontuais para permitir a narrativa nesta mídia, mas já pincela algo sobre uma organização secreta que envolve o passado dos pais dos Baudelaire, de alguns personagens que vamos conhecendo ao longo da série e do próprio Olaf. Essas informações não estão nos primeiros livros, mas seu acréscimo provou ser um grande acerto. Neles parece haver uma fórmula que, se usada repetidamente, poderia ser bastante enfadonho para a televisão.
O elenco é fora de série. Os atores mirins são casos raros de crianças que mandam muito bem na tela e Neil Patrick Harris ficou ótimo como Olaf. O personagem é um ator ruim, mas que se acha a última rapadura do deserto. Isto deu todas as chances para Harris ser exagerado e extravagante, e ele acerta na mosca ao equilibrar o lúdico e ridículo com o real e verossímil. O artista, inclusive, foi produtor da série e não perdeu a oportunidade de usar seu talento teatral para cantar a música de abertura, que não só é boa, como também tem a letra mudada a cada dois episódios ilustrando os acontecimentos dos mesmos. Funcionando como uma ótima introdução ao tom da obra, ela já diz que o programa vai arruinar seu dia, sua noite e sua vida, pois a história é repleta de infortúnios e desgraças, como o narrador dos livros sempre avisava.
O narrador, aliás, é Lemony Snicket, pseudônimo do autor Daniel Handler (“Rick“), que descreve tudo em um tom mórbido, porém irônico e cômico, frequentemente quebrando a quarta parede para falar com os leitores e avisá-los de que não tenham esperança sobre a jornada dos órfãos Baudelaire. A tradução disso para as telas foi precisa. O próprio Snicket aparece falando diretamente com o espectador e outra escolha acertadíssima foi colocar Patrick Warburton (a voz do Kronk em “A Nova Onda do Imperador”) para interpretá-lo no elenco. Entregando um tom sombrio recheado de ironia, Warburton está soberbo como o onisciente relator da obra. Para colocar o ator fisicamente na trama, o recurso utilizado foi que nenhum dos personagens o visse. Ele está lá só para o público. É um artifício muito bem utilizado e com texto excelente que mantém o clima do livro, já que o próprio autor roteirizou a série e muitas falas foram tiradas das páginas da fonte. A linha entre drama e comédia é precisamente desenhada.
“Desventuras em Série” consegue tratar de temas sérios como luto, perda e abuso num tom leve que fica apropriado para o público infantil. Grande mérito de uma obra que te deixa com o coração levemente quebrado, mas com a mente em deleite por um texto tão fluído e bem feito. Tecnicamente impecável, tem tudo para ser um clássico para adultos e crianças.