Primeiro filme solo de uma heroína da Marvel acerta em cheio ao contar a história de Carol Danvers descobrindo quem verdadeiramente é sem artifícios ultrapassados usados em longas sobre protagonistas femininas.
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino”. Esta é a célebre citação, na íntegra, da filósofa existencialista Simone de Beauvoir, imortalizada logo no início do segundo volume de sua obra mais famosa, “O Segundo Sexo”. O pensamento, também, é a força motriz de “Capitã Marvel”.
No início, Brie Larson é Vers, uma poderosa alienígena da raça Kree, mas que nunca soube mensurar, exatamente, a dimensão de sua força. Ela só sabe que precisa controlá-la para ser uma guerreira digna. Pelo menos é o que todos dizem a ela. Após escapar de uma emboscada armada pelos Skrulls, ela cai na terra, nos Estados Unidos dos anos 1990. Ali, descobre que Vers, talvez, não corresponda nem a metade da pessoa que ela é de verdade.
“Capitã Marvel” não vai te dar os clichês do protagonista alienígena ou forasteiro tentando entender como a Terra e seus costumes funcionam, e não vai te dar um interesse amoroso pelo qual torcer para que fiquem juntos no final. Este também não é um filme de origem tradicional do Marvel Studios – o que talvez seja o motivo que tenha irritado tantos fãs. Enquanto nos acostumamos a ver e torcer por heróis que sabiam quem eram e foram agentes ativos em sua transformação para suas personas de super-heróis, Vers se questiona até sobre sua identidade: ela é uma alienígena guerreira ou uma pilota da Força Aérea chamada Carol Danvers? Ela pode ser ambos? Uma de suas facetas tem que morrer para que ela possa viver?
E se o devir feminino, como coloca Beauvoir, vem do conjunto da civilização no qual a mulher se insere, em qual civilização ela deve se basear? E aí entra o trabalho de Brie Larson enquanto Capitã Marvel. Acostumada a filmes dramáticos e com um Oscar na mão por “O Quarto de Jack”, aqui, Larson encontra espaço para sair de sua zona de conforto e também pôr em prática sua expertise em interpretar mulheres complicadas. E sua Carol Danvers encontra o devir feminino na relação com a melhor amiga, Maria Rambeau (Lashana Lynch): mulher negra, pilota, mãe solo e que, mesmo distante de Carol, cultiva um amor sincero e admirável. O cinema ainda carece de histórias de amizades sinceras e puras entre mulheres, sobre uma incentivar a outra a ser sua melhor versão.
As palavras mais comuns a ser associadas com “Capitã Marvel” são “representatividade” e “empoderamento”. Ambos os conceitos possuem limitações: representatividade e empoderamento são bons, mas nem só de mulheres indestrutíveis se faz história. Para além da necessidade de ver mais protagonistas femininas no cinema, é preciso também uma diversidade de narrativas. A título de comparação, “Mulher-Maravilha” nos trouxe uma heroína forte, segura de si, com um senso de justiça implacável. E foi importantíssimo, tanto para o universo cinematográfico ao qual pertence quanto para as gerações de meninas que puderam, enfim, se sentirem fortes e incríveis em uma sala de cinema.
“Capitã Marvel” vem para continuar a saga de representatividade, ainda que com um considerável atraso por parte do estúdio. Ele chega para subverter o empoderamento: se nos acostumamos a ver este conceito como sinônimo de dar poder a alguém, especialmente à minorias, o filme da heroína mais poderosa do Universo Cinematográfico da Marvel mostra que “empoderamento” é descobrir a própria força por si só, e não deixar que influências externas limitem seu potencial. O MCU é repleto de filmes de origem sobre homens que tiveram seus poderes dados a eles, seja por destino ou dinheiro. Já a história da capitã se compara à de diversas mulheres brilhantes, que tiveram sua capacidade e vontade tolhidas por terceiros, normalmente homens, por conta de seu gênero; que ouviram a vida toda como permitir-se ser vulnerável é sinal de inferioridade.
No fim, este não é um filme de origem de super-herói. Não da forma que fomos condicionados a ver até então, pelo menos. A Capitã Marvel é uma heroína, mas sua jornada não se limita a isso. Ser mulher é muito mais. É a personificação do pensamento de Simone de Beauvoir, a origem de alguém tentando entender quem ela é no universo e no seu próprio eixo, alheia à impressão que os outros têm de sua pessoa, com um roteiro despido da vergonha de aderir ao discurso e sem medo de contar uma história que, pelo menos uma vez, não seja sobre o papel do homem na descoberta da força dessa figura feminina.