Dividido em duas partes, o longo e contundente documentário expõe detalhes sobre os abusos sexuais cometidos por Michael Jackson segundo duas vítimas e suas famílias.
No dia em que algum cineasta ousar produzir uma cinebiografia do “rei do pop”, este terá em suas mãos uma história tão rica em polêmicas, que será praticamente impossível converter tudo em um só filme. Resta fazer como o documentário “Deixando Neverland”, que expõe somente um dos aspectos da vida de Michael Jackson, mas sem dúvida um dos mais sombrios. A partir de longos e detalhados relatos de Wade Robson, Jimmy Safechuck e suas famílias, o diretor Dan Reed conta em 4 horas como os dois homens foram vítimas de abuso sexual pelo cantor quando eram crianças e o desdobramento dos eventos em suas vidas.
A primeira metade do documentário descreve como os meninos Wade e Jimmy cruzaram caminhos com Michael e se tornaram “amigos” inseparáveis do cantor. O filme não apressa o andar da história e, com riqueza de detalhes nos depoimentos, a imagem de Jackson como pessoa solitária e atenciosa é pintada. Seu poder e sua fama eram suficientes para ganhar a confiança dos pais das crianças, que em pouco tempo se sentiam tranquilos em deixar seus filhos dormirem no mesmo quarto que o astro. Mesmo contando somente com o ponto de vista dos dois meninos, agora adultos, e suas famílias, é chocante a maneira que ambos relembram suas experiências numa mistura de vergonha, confusão e carinho, apesar da crueldade dos abusos sofridos.
Para ilustrar os relatos, Dan reuniu imagens caseiras das famílias, incluindo vídeos e áudios gravados que comprovam o nível de intimidade entre Michael e os meninos. No entanto, nenhum documento é comprometedor o suficiente para provar os abusos, nem ao menos exclusivos a ponto de lançar novas perspectivas sobre quem foi a estrela do pop para quem acompanhou as manchetes da época. Trata-se de fotos e material de arquivo, quase todos com qualidade comprometida por serem em grande parte registros em fita magnética, de baixa resolução. As largas bordas negras dos quadros, necessárias para não deteriorar a qualidade das imagens não ampliadas, podem cansar espectadores, já que pouco material inédito foi produzido além das entrevistas e repetitivas gravações com drones sobrevoando os locais mencionados nos depoimentos.
A sobreposição das fotos e vídeos reunidos pouco faz para ressaltar ou pontuar as emoções ou os temas das conversas. A criatividade e qualquer outro aspecto autoral que poderiam estar presentes e dar forma ao documentário não são características de “Deixando Neverland”, que prefere ser uma obra demasiadamente objetiva, se apoiando exclusivamente nos detalhes escandalosos das histórias contadas. A falta de interesse em confrontar Wade e Jimmy em busca de possíveis outras versões para as denúncias também não ajuda a construir credibilidade em torno do documentário, reduzindo este a um veículo de conteúdo explícito típico de tabloides e que pouco faz para tornar inquestionáveis as histórias dos entrevistados.
A segunda metade do documentário continua os relatos em ordem cronológica, citando os processos judiciais que Michael enfrentou e as consequências dos relacionamentos nas vidas adultas de Wade e Jimmy. Uma vez passados os sórdidos detalhes, os impactos do domínio sobre os rapazes pelo cantor são de partir o coração, já que ambos tentaram seguir vidas normais, com carreira, casamento e filhos, por cima dos efeitos de um trauma monstruoso. Sobre esse aspecto, “Deixando Neverland” traça um raro retrato sobre as sequelas psicológicas de abusos sexuais contra crianças.
Apesar dos problemas quanto à forma do filme, não é difícil acreditar nos acusadores e se sensibilizar com os relatos. As dores e emoções mistas sentidas ao lembrar das experiências estão visíveis nos olhos, nas mãos e no falar das vítimas. Ainda mais potentes, as recordações sobre como Michael agia para atrair e manipular os meninos são exemplos claros sobre como predadores sexuais conseguem dominar fortemente suas presas. Espera-se que a popularidade deste documentário estimule uma onda de denúncias por conscientização e ajude vítimas de outros abusadores a sair da esfera de medo e silêncio.