Ethan Hawke entrega a atuação de uma vida nesse filme sombrio, pesado e cheio de culpa do diretor e roteirista Paul Schrader.
“Uma vida sem desespero é uma vida sem esperança” é o que diz a certa altura do filme o Reverendo Toller (Ethan Hawke, “Juliet, Nua e Crua”) para um homem insatisfeito com o mundo e à beira do colapso mental. A frase onde esses dois sentimentos contraditórios se encontram pode até soar pessimista demais, entretanto, faz muito sentido inserida no contexto em que é proferida, e reflete sobre os anseios de “No Coração da Escuridão”. O novo filme de Paul Schrader (roteirista de “Taxi Driver” e “Touro Indomável”) convoca o espectador a sentar no confessionário e testemunhar, através de filosofias cruas e quase nenhuma alegoria, os dramas de um atormentado padre que carrega uma cruz maior do que aquela que consegue suportar.
No filme, Ethan Hawke interpreta o Reverendo Toller, o ministro de uma pequena congregação no norte do estado de Nova York que tem que lidar com o crescente desespero causado por uma tragédia na qual se viu como responsável direto, as preocupações mundanas e também um passado que nunca deixou de atormentá-lo. Quando falamos em “Taxi Driver” a primeira coisa que vem à mente são a direção impecável do lendário Martin Scorsese e a atuação brilhante de Robert De Niro. Porém, muita gente esquece de dar valor ao roteiro daquela obra-prima do cinema, escrito pelo então novato Paul Schrader. Em “No Coração da Escuridão”, Schrader concebe o reverendo com artifícios semelhantes com os quais criou Travis Bickle, cercando-o com a mesma melancolia e colhendo novamente os frutos de uma caneta afiada com um personagem cheio de nuances.
Com uma direção minuciosa na observação do mise-en-scène, Schrader mostra-se hábil ao transportar para a tela tudo que foi pensado em texto, a começar pelo sentimento de estarmos num constante processo de confissão/testemunho. Durante os diálogos, assistimos de longe, com a sensação de estarmos sentado numa cadeira; mérito do posicionamento de câmera preciso do diretor, que por vezes oferece um close que nos aproxima mentalmente dos pensamentos dos personagens. E quando é a narração incrédula de Toller que surge nas cenas, é hora de colocar o público num confessionário e fazê-lo entender, através do ponto de vista do protagonista, seus dilemas. A ambientação, regularmente escura e carregada por sombras, evoca com maestria um lugar frio e solitário a exemplo da alma da figura principal e de alguns de seus discípulos.
O argumento denso de Schrader obtém outro feito louvável ao discutir vários temas, sendo um em especial pouco detalhado nos cinemas, e nesse caso atrelado a um homem da igreja. Além dos conflitos do presente e dos impactos do passado que insistem em retornar, grande parte da narrativa se dedica a conversar sobre as perspectivas que temos no que diz respeito ao meio ambiente. O personagem Michael (Philip Ettinger, “Confronto no Pavilhão 99”) surge como um ativista ambiental indignado com a ganância das grandes corporações que enxergam o aquecimento global, o desmatamento e a poluição como problemas corriqueiros, e por esse motivo não se importam como podem interferir na construção de um futuro para sua família. Acompanhando as preocupações de Michael, a pedido da mulher dele Mary (Amanda Seyfried, “Mamma Mia! Lá Vamos Nós de Novo“), Toller também assume essa “luta”, mais uma a pesar em suas costas e a martelar em sua mente.
A narrativa requer paciência, pois analisa cuidadosamente cada passo dado pelo protagonista, suas motivações e o resultado de suas ações. Como consequência disso, desenvolve-se num ritmo lento, o que pode gerar certo desconforto para aqueles que esperam por agilidade nas conclusões. Em contrapartida, presenteia o espectador com uma atuação primorosa de Ethan Hawke, um ator subestimado por Hollywood, e que aqui confere ao seu protagonista diversas camadas, transitando com brilhantismo por cada uma delas. Conversar sobre religião já é delicado, imagine então inserir um padre com crises existenciais e que encontra-se em um visível desequilíbrio psicológico, alternando entre tentar transmitir esperança com suas palavras, enquanto por dentro o desespero o corrói vorazmente? “No Coração da Escuridão” é uma produção corajosa, gelada, pessimista na medida certa para provocar e com debates que precisamos levar para além das telonas.