Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 10 de fevereiro de 2019

Sem Rastros (2018): cinema em prol da sutileza

Aproveitando todo o potencial da linguagem cinematográfica, Debra Granik conta a sensível história de uma garota e seu pai buscando encontrar seus lugares no mundo.

Até que ponto uma adolescente pode se limitar a viver a mesma vida que o pai? O novo filme de Debra Granik, diretora que lançou Jennifer Lawrence ao estrelato com “Inverno da Alma”, segue outra vez a perspectiva de uma menina, Tom (Thomasin McKenzie, “O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos”) que vive sozinha numa floresta urbana com o pai, Will (Ben Foster, “A Qualquer Custo”). Em “Sem Rastros”, os dois tentam se esquivar do contato humano e começam suas histórias sobrevivendo com as próprias habilidades, morando escondidos num parque público dentro dos limites da cidade de Portland, no noroeste dos Estados Unidos. Até aqui a premissa se assemelha com a de “Capitão Fantástico“, mas a obra navega por caminhos mais íntimos e outras questões universais.

Num primeiro momento, não se sabe o motivo do acampamento rústico, nem onde exatamente pai e filha se encontram. Entretanto, uma das graças da jornada proposta por Granik é completar progressivamente o quebra-cabeça que explica a situação de Will e Tom. A garota é esperta, obediente e aprende fácil as lições do pai. Ambos dividem tarefas de sobrevivência, como fazer fogueiras, coletar água da chuva e encontrar comida. É muito importante para Will que a filha saiba como não deixar rastros e consiga rapidamente desaparecer com ele no meio do verde exuberante, caso alguém os veja. O problema é que esse mundo idílico pouco a pouco se torna insuficiente para Tom.

A separação dos protagonistas com o resto do mundo é realçada pela cinematografia de “Sem Rastros”. Para cobrir o silêncio calmo da floresta, o longa executa um fio de música como de uma orquestra afinando instrumentos. Já quando Will precisa atravessar a cidade, ou quando a história não o dá outra escolha senão lidar com outras pessoas, o desenho de som muda completamente e acentua o desconforto que o homem sente quando está dentro de uma sociedade. Mesmo quando ele se vê numa comunidade bastante próxima ao estilo de vida que busca, o efeito das cordas na trilha sonora da floresta é um pouco mais estridente, pontuando seu imbatível deslocamento social. Como exemplo do uso subjetivo de elementos visuais, a diretora chega a deixar um enorme tronco de árvore, dividindo ao meio um dos quadros do filme, para separar Tom de autoridades oferecendo ajuda.

Acompanhar os dois personagens é ainda mais interessante quando eles são desafiados separadamente. Enquanto Tom recebe acompanhamento psicológico e conclui que talvez não seja bom para ela se isolar, Will é restringido de contato humano por insensíveis testes psicotécnicos eletrônicos, reforçando a ideia de que o único lugar onde eles podem ser eles mesmos é longe. Vale notar que em nenhum momento do filme as instituições sociais mostradas são hostis para a família. Muito pelo contrário. No entanto, nada parece ser suficiente para convencer o depressivo pai a aceitar outro estilo de vida, nem a crescente resistência da filha, que ainda assim se mantém paciente, tolerante e compreensiva em relação aos possíveis motivos dele.

Outro aspecto que enriquece a narrativa é o interesse de Tom por animais ao longo da história. Na floresta, ela estuda sobre cavalos marinhos. Posteriormente, ela lê sobre a natureza dos sapos, enfeita uma janela com cavalos e se interessa por um coelho de criação. São detalhes que a princípio parecem não ter a ver com a trama, mas na prática são carregados de simbologia. Especialmente quando ela aprende a manipular abelhas, ciente do fato que elas não nos machucam à toa, e mesmo assim somos capazes de sobreviver a centenas de ferroadas, Tom entende todas as lições que precisa para compreender ou confrontar seu pai. Sua personagem começa dependente de Will, mas à medida que amadurece, a adolescente se torna capaz para enxergar o mundo com os próprios olhos.

“Sem Rastros” é um excelente exemplo de como uma história simples, mas de tremenda humanidade, pode ser amplificada através das palavras, imagens e sons. Numa primeira leitura, esses elementos já satisfazem como uma bela e íntegra obra, mas também carregam consigo camadas extras que engrandecem a narrativa e, no geral, a experiência de assistir ao filme. Se isso já não bastasse, o longa é elevado pelas sensíveis atuações de Foster e McKenzie, que de tão complexas e nuançadas parecem querer convencer de que são personagens da vida real. Por trás de tudo isso, a diretora e roteirista Debra Granik se consolida com uma das mais promissoras cineastas da década.

William Sousa
@williamsousa

Compartilhe