Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 05 de fevereiro de 2019

Se a Rua Beale Falasse (2018): sobre amor e compaixão

Um profundo drama familiar e racial, que não deixa de retratar todas as dimensões importantes de sua temática, porém sem abrir mão da poesia que lhe confere a aura de uma dança.

Leve como uma dança, o novo filme do premiado diretor de “Moonlight” (2016), Barry Jenkins, é daquelas joias que quase todo ano podemos encontrar no meio das dezenas de obras indicadas ao Oscar, entre umass que por algum motivo são supervalorizadas, e outras que são apostas dos estúdios na premiação. Não por acaso, “Se a Rua Beale Falasse” somou três indicações para o prêmio.

A trama foi adaptada pelo próprio Jenkins, indicado ao Oscar por isso, a partir do livro de James Baldwin, escritor americano retratado no premiado documentário “Eu Não Sou Seu Negro” (2016), de Raoul Peck. Nela, acompanhamos a história de amor de Fonny (Stephan James, “Raça”) e Tish (Kiki Layne), recortada entre as memórias adocicadas do casal desde a infância, até o presente da narrativa (que se passa nos anos 1970), endurecido pelo desafio de ter Fonny preso, acusado de um crime que não cometeu, ao mesmo tempo em que Tish descobre estar grávida. Sem apelar para o melodrama, a narrativa destaca a jornada dupla de Tish entre a preparação para a maternidade e a busca pela soltura do pai, ao mesmo tempo que expõe e reflete sobre algumas facetas do racismo manifesto dos mais diversas modos, desde na busca por um imóvel até pelas instituições do Estado, como a polícia e a justiça.

“Se a Rua Beale Falasse” trata-se, assim, de um drama político, que faz com que Jenkins se destaque como um dos diretores mais ativos no uso do cinema como instrumento de reflexão e reparação histórica, tal como Steve McQueen (“12 Anos de Escravidão”). Assim, ele mostra não apenas ser um diretor com algo a dizer, como também sabe como fazer. O diretor tem mostrado, em sua filmografia, ser dotado de um capricho visual e aprumo estético que tornam suas produções ainda mais valorizáveis. Assim como em “Moonlight”, não se trata aqui apenas de um drama incisivo pelo seu tema, como também de uma boa obra cinematográfica pela sua forma visual, pois o cinema se faz de imagens compostas. Nessa produção, dedica-se ainda mais atenção a aspectos como figurino e iluminação, tratados não apenas para a reconstrução histórica, como também especialmente para as demandas de um elenco quase integralmente negro.

Esse verdadeiro capricho visual confere ainda uma dignidade ao drama retratado. Trata-se de uma história deveras restrita, em termos de personagens, núcleos e viradas, mas ainda assim trabalhada com o esmero de uma peça de teatro – e, especialmente, de um texto de teatro. São nesses momentos que seus bons atores conseguem reluzir ainda mais, com destaque ao núcleo familiar de Tish, que transborda compaixão e solidariedade. O destaque, corroborado pelas várias indicações à diferentes prêmios de atuação, fica para Regina King (da série “Big Bang: A Teoria”), que interpreta a mãe de Tish.

Mas é a poesia da forma como retrata a relação amorosa de Tish e Fonny que faz Jenkins transformar “Se a Rua Beale Falasse”, esse denso drama social escrito em 1974, em algo próximo a uma música, sintetizada por um score agradável de Nicholas Britell (também indicado ao Oscar), acompanhando os melhores momentos da história. O jovem Fonny – vivido com muita sensibilidade por Stephan James – é um escultor iniciante que sonha em morar com Tish. Suas peças são compostas com materiais brutos, como madeira e pregos e, ainda assim, ostentam um beleza e equilíbrio que parecem subverter sua matéria. Da mesma forma aqui, mesmo que a história retratada seja repleta de descaminhos, tristezas e mal entendidos, em nenhum momento se recai no desespero, nem se perde a poesia de estar vivo e amar.

Vinícius Volcof
@volcof

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