Ao interpretar uma espinhosa autora desiludida com a vida, Melissa McCarthy presenteia o público com uma personagem multifacetada num drama instigante e envolvente.
É raro aparecer um filme biográfico que não transforme seu personagem principal em herói ou glorifique suas ações. Em “Poderia Me Perdoar?”, Melissa McCarthy (“Um Santo Vizinho”) interpreta a sociofóbica autora Lee Israel, cuja fama não veio necessariamente dos livros que escreveu, mas pelos atos criminosos que praticou. A atriz reconhecida por papéis de comédia pastelão, como em “A Espiã Que Sabia de Menos” e “Uma Ladra Sem Limites”, aqui contém sua expressividade corporal para colorir com emoções uma mulher dura, frustrada e solitária, que encontrou na fraude uma maneira de manifestar seu trabalho.
Incapaz de manter um emprego fixo, a senhora Israel canaliza suas decepções profissionais em copos de uísque e vomita críticas contra a indústria editorial que não favorece escritoras como ela. A ponto de virar totalmente as costas, sua agente Marjorie (Jane Curtin, “As Bem Armadas”) esgota as últimas energias contra a hostilidade típica de Lee para um último conselho: ou ela se torna uma pessoa melhor e joga pelas regras do mercado, ou então que procure outras maneiras para ganhar dinheiro. Se fosse personagem inventada num filme de ficção, Lee talvez enfrentaria suas dificuldades pessoais e seguiria a primeira opção, mas a obra dirigida por Marielle Heller (“O Diário de uma Adolescente”) é sobre uma pessoa real e teimosa como a mulher do piolho.
Sem crédito e cheia de dívidas, Lee precisa arranjar dinheiro rápido para os cuidados médicos de sua idosa gatinha que está adoecida. Para isso, ela resolve vender uma carta pessoal que recebeu da atriz Katharine Hepburn, quando descobre pela doce livreira Anna (Dolly Wells, “45 Anos”) que existe um mercado promissor entre os colecionadores deste tipo de artefato. Acumulando pequenas transgressões como um tipo de compensação por seus problemas, Israel resolve ir além e começa a fabricar cartas de personalidades fazendo uso do seu talento literário biografista. Mais do que um modo de obter lucro fácil, vender suas falsificações é uma maneira de ver seu trabalho artístico reconhecido, o que estimula a autora a prosseguir com os crimes mesmo com o risco de ser descoberta pelo FBI.
Novamente, se fosse uma obra fictícia, a história poderia escolher ilustrar Lee como a rainha do furto e do estelionato, atribuindo o glamour comum dos filmes de assalto como forma de divertimento fácil. Porém, a personagem não é tão especial assim, e Melissa oferece um incrível alcance emocional para tornar interessante a antipática mulher. Um enorme leque de atributos por trás do medo de se relacionar é visível no rosto expressivo de McCarthy por reações que não se explicam em palavras. À medida que a falsificadora “desenvolve o próprio mercado” e se satisfaz com o sucesso, todo o exterior de Israel muda para melhor. Seu imundo e fedorento apartamento fica arrumado novamente. Uma amizade improvável com o velho excêntrico metido a traficante Jack (Richard E. Grant, de “Logan”, e que praticamente rouba as cenas para si) a faz se abrir para excitantes experiências fora de seu mundinho fechado. Até mesmo o duro coração da escritora esboça um certo amolecimento ao se aproximar de Anna, mas ainda é muito sensível para lidar com a possibilidade de uma frustração. Como um gato arisco, desconfiado e amedrontado, Lee põe à prova a própria crença de que pessoas são melhores à distância.
Há um risco quando se decide contar uma história a partir de um protagonista desagradável. Muitos filmes promissores falham pelo simples fato de não ter um intérprete que se conecte com o público. “Poderia Me Perdoar?” esbarra nesse problema, mas a humanidade que Melissa McCarthy projeta em Lee Israel é fascinante e desafia os espectadores a serem capazes de compreendê-la com compaixão, como propõe o título do filme. Com um roteiro desenhado para favorecer essa jornada pessoal no lugar de lançar fatos sobre a vida da autora, o filme prende a atenção e confia na emoção da audiência. Depois de oferecer uma melhor compreensão de sua personagem principal, o coeso longa é até convidativo a rever e saborear novamente o trabalho excepcional da atriz norte-americana.